sábado, 14 de janeiro de 2012

Congratulations! you have passed level one

Acordo com aquela sensação de já não haver nada mais para dormir, e ainda assim muita vontade de continuar a brincar com a frescura do lençol, a enrolar-se nos pés, a deslizar nas mãos. Sentir o corpo a afundar-se no corpo, libertar-se em micro sonos, para voltar a acordar e de novo afundar – até se cansar.
Domingo, eu sei-o. Sem calendário, sem aviso, sem lembrança. Basta ouvir a minha mãe, já na cozinha a lutar contra vapores de panelas, legumes a cortar para a sopa – esse sabor que nunca consegui reproduzir depois de tantas cópias falhadas que se seguiriam num futuro distante. O som indistinto, subaquático, da telefonia em amplitude modulada, a trazer músicas do fundo do último naco de transistor, a embalar o vai e vem da faca nas batatas, e ela a cantarolar por cima naquele mmm aveludado que só uma mãe a sério sabe fazer.

Pela janela entram farrapos ordeiros de luz, envoltos em nadas de dez da matina. Luz própria de um verão preguiçoso por começar, filtrada pelas folhas dos limoeiros do quintal da vizinha Adelaide, árvores embaladas num sono de brisa mole.

Existe um falso silêncio, de passarada a ressacar, piando aleatoriamente em contraponto com uma ou outra coisa que lá fora acontece: uma ladainha de mundo à espera de acordar, enrolado nessa luz preguiçosa. Por isso eu sei, é Domingo.

É dia de desenhos animados em pijama, olhos em cima da televisão, muito perto para não escapar nada, bulha de telecomando com a irmã, apesar de querermos mais ou menos o mesmo. Não pense ela que por ser mais velha por dois anos que tem muito mais a dizer sobre o que ver ou não. Que se perceba que o programa matinal de Domingo está previamente definido desde a origem dos tempos, quando os telecomandos ainda não existiam, quando a cor televisiva era uma vasta paleta do cinzento muito escuro ao cinzento muito claro.
Os desenhos animados, sempre precedidos de pequeno almoço digno da recepção ao embaixador de mais-que-além. Um mimo que sempre me fez falta desde então, coisa que só voltaria a sentir ao de leve quando pernoitava em hotel caro, mas sem o calor que só as coisas feitas com carinho têm. Fatias douradas, acabadas de fazer enchiam a cozinha de um cheiro mágico, acompanhadas de leite com chocolate, bem quente, independentemente da temperatura do ar. Fatias douradas são aquele fio de Ariadne que liga essas manhãs às outras menores manhãs em que como um simulacro muito mal amanhado de fatias na pastelaria. Invariavelmente acabava sempre por acontecer a fuga de uma ou duas fatias para a sala, a fazer-nos companhia no televisionamento das aventuras de leões que falam, unicórnios que voam, e outros seres muito coloridos, muito impossíveis, mas totalmente necessários. Fico sempre com a sensação de que poderia ficar mais duas, dez, vinte horas a ver bonecos a explodir, tartarugas a lutar com bandidos, coelhos a detonarem lobos, patos milionários e o mais que houvesse.

 Mais ou menos pela altura em que o cheiro da comida começa a invadir as divisões da casa, cavalo de tróia pronto a trair os estômagos em dieta, aroma embrulhado em luz forte de meio-dia, chega o meu pai. Homem robusto, de pouca conversa mas de sorriso largo. Larga sempre as chaves um pouco à bruta na base da fruteira, um daqueles aparatos de loiça que serve para largar tudo menos fruta: isqueiros, chaves, contas da luz, contas da água, pilhas, postais… e todas as outras coisas que se largam, que não têm bem um sítio próprio, mas que convém estarem sempre à mão, mesmo que depois sejam eternamente esquecidas.

O pai Valério tem sempre uma brincadeira pra  nós, coisa de macho carinhoso: um calduço, uma rasteirita, uma valente carga de cócegas… deve ser como aquelas coisas que se vê nos programas sobre chimpanzés, a seguir aos desenhos animados, reforço de laços familiares… mas sabe bem. Entra na cozinha, com a sua voz ressonante, como se fosse uma linha de baixo de música soul, e troca algumas palavras com a minha mãe. Sempre tiveram uma relação que irei invejar daqui a alguns anos, e por muitos anos. Pouca conversa, muito eficaz, brincadeiras pequenas, muito físicas, beliscões, apalpões, risota miúda, entendimento total.
 Quando o meu pai entra em casa, entra com ele um cheiro a ervas aromáticas, como se fosse o tempero final do cheiro dos cozinhados da minha mãe. Um cheiro a coisa que veio e voltará para a Natureza, que aliás nunca se separou verdadeiramente dela e que me custará tanto devolver a Ela.

O almoço de peixe assado não é só peixe assado. É risota sobre a espinha que fica pendurada no bigode do pai,  não esquecer de não pôr os cotovelos na mesa, discussões acesas sobre se quando a hora adiantar irá roubar horas ao sono, apesar de todos os anos a contabilidade ser igual,  grandes talhadas de melancia comidas com pressa tal que geram pequenas batalhas na laringe. O rádio continua lá no fundo a cantarolar qualquer coisa indistinta e nebulosa a acompanhar o estalar das últimas brasas de carvão na grelha. E há vinho, e há azeite e pão, e azeitonas… e tudo isto é um domingo.

Levanta-se a loiça e quase que se ajuda a mãe, sempre de olho na escapatória para mais umas horas de brincadeira, aproveitar bem que amanhã há escola outra vez.

Fui à casa de banho e reparei pela primeira, mas não seria a última, uma mancha vermelha, deslavada, pequena, nas cuecas. Nesse dia ainda não o sabia, mas hoje carrego dentro das entranhas a prova que tinha ultrapassado o primeiro nível desse jogo inglório que é viver.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Angústia Matinal


I
Deixei-a, friamente, junto a um táxi perto da estação de metro dos Anjos. Praticamente nem esperei ou acenei e voltei costas quase sem me despedir, traindo o sorriso sincero que os seus olhos revelavam no fugidio vidro traseiro. Fui andando semicurvado, movendo-me sem sentimentos e perdi, por momentos, o senso; dei por mim a enfiar-me por uma ruela por onde nunca tinha passado.
Entretanto, quase sem me aperceber, começou a chover lentamente. Uma chuva miúda, mas compacta, amanhada numa acidez melancólica. Seguia para casa, arrastava-me ― impelido pelos all star gastos e quase rasgados pelas noites sujas que me consumiam ― transtornado, enquanto todo eu começava a ficar engelhadamente molhado. A água da chuva e as lágrimas, ambas tristes, pingavam-me a cara à vez, sem pedir permissão. O casaco apertado à cintura, agora encharcado, vertia gotas por uma das suas oblíquas pontas daquele misto ou mosto de lágrimas/água da chuva. Pesava imenso. Presumivelmente foi uma qualquer reacção provocada pela amargura acídica do sal que compõe as minhas lágrimas.
Continuei a subir a rua de forma metódica, cruzando-me com os suspiros de umas árvores perdidas pelo passeio e agitadas por uma falsa brisa, aos encontrões com o acaso. Sempre tive uma relação especial com o acaso ― aberta, como agora se diz ― que ora aparece, ora desaparece, e sempre me trata como uma das putas velhas que, muito provavelmente, se estariam a vender por cinquenta euros, ou pouco mais, numa qualquer rua próxima do sítio por onde vagueava (umas para comer, outras para o garrote, outras porque, agora, nada mais sabiam fazer).
Não conseguia ouvir e a realidade aparecia e desaparecia em flashes. Era como se o Muhammad Ali me tivesse esmurrado os ouvidos até ao coma auditivo e o cérebro amolgado tivesse dificuldade em ver por entre os olhos inchados e negros. Tinha os headphones enterrados violentamente violentando-me as orelhas em troca de uns sons. Ouvia qualquer coisa triste à qual nem sequer prestava atenção...
That there, that's not me
I go where I please
I walk through walls
I float down the Liffey
I'm not here
This isn't happening
I'm not here, I'm not here
...os ténis, sujos e ainda mais gastos, embicavam nas dramaturgias soltas de uma calçada estruturalmente maliciosa e irritante que me enfrentava inclinadamente, aquelas que atribuía à minha vida. Os olhos, estranhamente abertos e inertes, transpareciam uma qualquer loucura bebida, ainda não diagnosticada, mas prognosível a médio prazo. A chuva não parava, por muito que me irritasse, e a música que me entoava o cérebro anunciava a perdição que vinha conseguindo esconder ― “Strobe lights and blown speakers, Fireworks and hurricanes”.
Parei por momentos e olhei para cima, encarando de frente a chuva, que me dificultava a visão, e o escuro tépido que mascarava a noite. De certa forma, num agnosticismo desconfiado, perguntei algo a quem quer que me estivesse a observar ― ninguém respondeu.
Intimado a andar, o meu corpo resistiu mesmo sob pena de uma possível sanção compulsória ― encontrando-se a minha mente preparada já para a aplicar e cobrar ―, como se pesasse o mesmo que o próprio planeta. Inexistia neste preciso momento. Deixei de saber quem era, apesar de lúcido.
A chuva adensava-se e sentia-me a ser engolido por um oceano de mágoa e apatia; tentava submergir esbracejando, mas o corpo não respondia. Ofegava de tal forma ― a laringe contorcia-se e não conseguia respirar ― que tive de me encostar à parede de um edifício devoluto de dois andares que parecia ter ganho vida. Os grafitis coloridos e gigantescos que o ocupavam começaram a soltar-se angustiosamente e pareciam querer agarrar-me. Perdi-me por ali, no meio das luzes dos candeeiros que dançavam sob a minha ansiedade.
Subitamente, e após acordar, uma jocosa e terna ironia apossou-se dos meus olhos e fez-me sorrir. Não me lembrava ao certo do que se tinha passado, nem de ter chegado a casa, mas estava ainda mais encharcado. Era raiva encapotada. Saí do corpo que me encurtava os passos e, enquanto flutuava como um balão de ar quente, observei-me do alto do quarto. Desapareci rapidamente, como se o balão tivesse perdido o nó e se esvaziasse e apitasse desenfreadamente, e não me procurei. Ninguém me procurou. Adormeci outra vez.

II
Eram cerca de 8h20 quando o despertador tocou e eu o esmurrei com a mão direita fechada como fazia todas as manhãs. Era uma daquelas relações violentas que pareciam estar munidas de uma dureza de titânio. Com um pontapé afastei as mantas e obriguei-me a sair da cama. A dor que me atravessava o corpo misturava-se com a vermelhidão anémica que me tomava os olhos. Abri parcialmente a persiana por onde perpassaram quatro ou cinco ruidosos raios de luz. Peguei no telemóvel e reparei na mensagem que piscava no visor ― “Adorei a noite! Dorme bem.” ―, o que adensou a nuvem de culpa e autocomiseração que me engolia. 
Calcei os chinelos com alguma dificuldade, peguei numas cuecas de um cinzento gasto e numa toalha creme e arrastei-me até à casa de banho. O chão estava frio, o que percebi nos momentos antes de entrar na banheira e enquanto mijava para a bocejante boca da sanita. Perdi algum tempo a conseguir controlar a temperatura da água até à que consigo suportar, o que me irritou parcialmente. Encostei-me por minutos à parede e reguei-me em silêncio enquanto ouvia o som da água a correr, e ia inspirando e expirando com dificuldade o vapor que poluía o espaço; passaram-se cerca de trinta minutos num curto espaço de tempo em que milhões de pensamentos me iam atropelando: o que se tinha passado comigo a noite passada; tudo aquilo que tinha para acabar até ao final do dia; porque razão não conseguia nutrir verdadeiros sentimentos por ninguém; de onde provinha o desinteresse e desapontamento apocalípticos que tinha por tudo o que fazia...
Escolhi um fato escuro, algo amarrotado, uma camisa branca e uma gravata azul, e voltei à casa de banho para poder ajeitar o nó da gravata e colocar alguma cera de forma a levantar um pouco o cabelo. Saí apressadamente de casa num passo largo, com o Beginners do Raymond Carver debaixo do braço esquerdo. O brilho instável do sol matinal irritava-me os olhos, que seguiam cabisbaixos e indiferentes. Parei no café onde parava todas as manhãs,
― “Senhor António, é uma bica, se faz favor”.
― “Bom dia Doutor, então como vai isso?”, perguntou enquanto batia na máquina do café de forma estrondosa com a peça em que se coloca e aperta o café.
― “Vai-se andando; mais um dia de trabalho…”, respondi com alguma deferência, enquanto lia um pouco ao balcão.
― “Ó Doutor, está cá com umas olheiras, não dormiu?”
― “Cá para mim foi para os copos…”, afirmou satiricamente enquanto poisava habilidosamente a chávena de café ― que encheu até meio de forma minuciosa, como fazia todos os dias ― no balcão ainda brilhante, mas agastado com a crise do país que agora ecoava do jornal da manhã e que queria saltar da minúscula televisão erguida no alto do estabelecimento.
Bebi o café num trago e bochechei um pouco para sentir melhor o gosto do café a infiltrar-se pelas papilas gustativas. Bebi um copo de água ao mesmo tempo que me inclinava ligeiramente para trás, talvez para a água vazar melhor até ao estômago, por entre o olhar agora algo preocupado do Senhor António,
― “Não passei muito bem a noite, mas agora já estou melhor”, respondi-lhe finalmente.
Saí e segui numa passada galopante até à estação de metro dos Anjos, que fedia como todas as manhãs. Aquela sordidez congénita, mijo e ratos esfomeados, era-me familiar, fazia parte do meu dia a dia e, muito provavelmente, sentiria a sua falta caso tivesse de me divorciar daquela rotina diária. Sentei-me e esperei alguns minutos pelo metro, ao mesmo tempo que ia reconhecendo as caras incógnitas que todos os dias se sentavam perto de mim, com o mesmo contrariado semblante matinal ― pareciam todos ter ingerido os mesmos comprimidos de apatia. Perdia-me a olhar para os vultos, perguntando-me sobre o que estariam a pensar, sobre o que teriam feito na noite passada, o que teriam comido, quem teriam fodido, com quem teriam discutido, o que ajudava a passar o tempo.
Saí do metro na estação da Baixa-Chiado e segui pela falida Rua do Ouro até ao início da Avenida da Liberdade, ao passo que me ia cruzando com pessoas avulsas que corriam irracionalmente para cima e para baixo, enfatadas e engravatadas ― os nós das gravatas estavam, em regra, tão apertados que os executivos, perante um convite para o autoenforcamento, pareciam ter aceite tão honrosa invitação ―, qual manada de gnus a fugir do predador numa realidade difusamente ingénua, e entrei num edifício de acabamentos dourados e portadas altas e amplas, como fazia todos os dias.
― “Bom dia, Tiago”, cumprimentei o segurança.
― “Bom dia, Doutor”, respondeu com os olhos hipnotizados pelo computador.
Esperei pelo elevador na esperança de não encontrar nenhum colega com quem tivesse de trocar umas hipócritas palavras de circunstância ― “Então, muito trabalho”?; “Sim, estou cheio de trabalho, mas é melhor ter muito, que não ter, não é?! Ahaha”. Por sorte, não me cruzei com ninguém. Saí do elevador como uma sombra e dirigi-me para o meu lugar. Tirei o casaco e pendurei-o, e, logo de seguida, após ter ligado o ar condicionado, liguei o computador maquinalmente. Era inverno, mas o sol brilhava lá fora num pesar de agonia.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

21h30

Sendo onde desperdiço tanto tempo, o tempo aqui até que me parece mais lento. É mais viscoso e desenrola-se num murmúrio. Uma ressonância mole que exala das paredes, movida pelo gerador da iluminação baixa.
Não venho aqui pelo chá, nem pelo café, que tenho em casa. Não venho pelo cigarro que fumo numa lentidão de princípio de tempos. O pouco que por vezes aqui petisco também não é culinária que tirasse alguém de casa com a chuva fina e nova que cai, a empurrar os casais para o sofá e a prender os gatos em beirados de janelas. Não é pela companhia de conversa que não apareceu. Não é pela música de fundo, que está tão no fundo que nem se lhe vê o brilho, apenas roça a medo no cone das colunas, um crispar débil de qualquer coisa sonora. Em suma não venho aqui pelo que aqui poderia haver, porque tudo o que aqui há posso tê-lo ou construí-lo noutro lado, talvez até com uma forma mais própria, um casaco de alfaiate e não esta calça de pronto-a-vestir.
Venho aqui porque aqui construo uma nova solidão. Uma solidão com brilho de colheres de café a reflectirem uma luz amarela e densa que banha tudo num nevoeiro de preguiça triunfal. Uma solidão que namora o barulho quase marítimo das conversas intercaladas pelo gelo a rodar nos copos, da máquina a registar mais uma sandes de carne assada, porque aqui não se pode pedir comida complicada.
Venho aqui porque trago esta solidão a passear, é o meu cão que precisa de cheirar tudo o que cheirou ontem outra vez, mas sempre com um abanar de cauda frenético como se este fosse o dia da criação de todos os cheiros, um génesis olfactivo.
Venho aqui porque me perco entre o imiscuir-me nas conversas de um casal soturno e o tilintar da colher a mexer o café, tudo interrompido pelo vapor da máquina a aquecer um cappucino muito falsificado, quase meia de leite. E porque este queimar de minutos a ler um jornal qualquer, mesmo que da semana passada, me banha a alma de uma qualquer coisa domingueira e aprazível. É um sol portátil reanimado por pilhas de dormência, lento mas quente e que me faz sentir pequeno e protegido.
Não venho aqui por estar à espera de companhia, porque essa não vai aparecer. Sento-me nestas cadeiras porque é um sítio em que a solidão me faz companhia. Porque tenho todo um espectáculo de cor e luz, que me dá aquele ultimo aconchego antes de ir pôr o corpo a dormir.
Sento-me com urgência, porque todo o tempo é pouco, quando o quero ver bem desperdiçado. E tenho vindo a apurar essa preguiça, com maneirismos e rituais próprios duma nova religião, libertadora e sonâmbula. Primeiro sento o corpo na mesa em que me pareça existir a cadeira que me vai prender por mais tempo. Tiro cachecol e casaco, e lambuzo os olhos pela sala, mirando pontos infinitos mas sorvendo todos os personagens e mobiliários. O décor é conhecido, os actores também são sempre muito familiares, e isso é reconfortante.
Venho aqui porque venero este templo de inutilidade, onde posso simplesmente largar-me a não fazer nada. E não é fácil, acreditem. A arte do apenas não-fazer é coisa muito difícil para o comum dos mortais, e nem sempre é atingível. Requer manhas de animal doméstico, requer treino de atleta, meditação de budista, ausente num nirvana de estar entretido só com o cintilar do fumo do tabaco na luz difusa dos candeeiros demodé do café.
O pedido é feito ao empregado com requintes de novidade, uma coisa que preciso mesmo, agora, impreterível, desejo de grávida. Mas tanto eu como ele sabemos que não passa do mesmo café que pedi ontem e antes de ontem, e por aí fora. Um ciclo que se repete num ritual nocturno, religião pagã de deus líquido. É sempre o mesmo café, o mesmo copo de água e o mesmo cinzeiro. Ele, tal como eu ao pedir, ouve o pedido com uma delicadeza de primeira vez – acho que percebe o ritual e desconfio que lhe apraz fazer parte dele. Ele sente que encarna o cálice da eucaristia, mas com avental preto e camisa branca.
Espero sempre que o café arrefeça um pouco, nem tanto pelo calor do líquido mas para poder apreciar o vapor perfumado que emana da chávena. É um complemento gratuito que não dispenso, um luxo de pormenor que completa toda esta dança de tiques. Não preciso de açúcar no expresso, aliás quase que não ponho nenhum, mas acabo sempre por abanar o pacote até empurrar os minúsculos cristais para o fundo do rectângulo de papel e abro a goela do invólucro até meio caminho. Despejo uma quantidade insignificante de sacarose na chávena e prontamente puxo da colher, minúscula e cintilante, que enfio nessa seiva castanha que anima o mundo. Mexo, remexo, canso o líquido com o remoinho até eu próprio me fartar. Só agora é que o posso beber. Só agora é que o café está pronto a entrar neste corpo empreguiçado. E bebo-o. Bebo-o devagar mas com afinco, num saborear lento e calculado.
Qualquer apreciador de café sabe que o sabor muda conforme a geografia do tempo e do espaço. Este café não tem o mesmo sabor daquele que tomo meio à pressa no quiosque perto do trabalho. Esse sim, com uma função específica e absolutamente necessária: animar o tecido adiposo, nervoso, muscular, esquelético, para mais uma estafeta. E esse não me vai chegar. Sou muito amigo da cafeína. Ela compreende-me, e eu bebo-a com gosto.
O café da manhã, arrancado a custo das goelas metálicas duma máquina que não é relíquia de museu por questões meramente empresariais, sabe-me a cidade que acorda e que boceja, e que responde devagar aos bons dias, num esforço hercúleo duma humanidade sonolenta. Tem aquele som de sino da escola, coisa que vai começar, sequência de abertura de talk-show televisivo, tiro de partida. E empurra, a mim e aos outros que se acotovelam á volta do quiosque, para essa corrida com meta que foge e que quando acaba já tem promessa de voltar amanhã – a menos que amanhã seja domingo.
Este que arrefece à minha frente tem o sabor de todo um mundo diferente. Sabe a preguiça, a jornal por ler, a discussão lenta e fácil sobre uma arte qualquer, a urbe que se quer manter acordada para apreciar o cintilar de candeeiros. Sabe a conversa mole, a tempo que é sempre pouco para ser desperdiçado com gosto. Tem som de jazz preguiçoso, tocado por pretos gordos e afáveis, de dedos imensos e cilíndricos, despreocupados com as ganâncias do mundo e as politicas dos políticos. Tem aura de rua estreita e sinuosa banhada por um só candeeiro de luz amarelada e movediça. Tem cor de coisa eternamente vaga mas sábia, de domingo tardio.
Café bebido. Ensaio um ar de enfado em roda e puxo do cigarro. O último do maço – vou ter uma oportunidade de me fazer passear pelo espaço que une a minha mesa à máquina de venda automática: uma caixa metálica feia, colorida, desenquadrada do meio, encostada num canto pouco luminoso, para não atrapalhar o resto da encenação de conforto.
Enquanto queimo o cilindro para dentro de mim, vou pensando em coisas miúdas: mercearia, comida, o dinheiro que ainda falta gastar, aquele par de ténis que ando a prometer a mim próprio comprar há um século de semanas, as mamas da vizinha, o vizinho do lado e a sua estereofonia de alta capacidade sonora, os anos do meu pai que se aproximam, a picadela de mosquito que me anda a coçar a orelha, o enigma resmungado que o patrão soltou esta manhã, a sandes de atum que caiu mal e que parece ter decidido ficar mesmo pelo esófago e da lá não sair… Mas sei que é uma maneira de fugir às outras coisas, aos outros pensamentos. O truque é manter as coisas miúdas acessas antes de chegar ao filtro.
Neste templo de inutilidade não sou o único a orar a esse deus fumarento da inércia por vontade própria. Várias mesas enchem-se de solitários, casais, trios, quartetos, e mais raramente até sextetos, de fumantes, amantes, amadores e voyeurs, amantes da realidade alheia, parasitas do nada – como eu. Sentam-se em grupos, e mesmo quando sozinhos fazem parelha com o movimento dessincronizado dos bailarinos que transportam cafés e águas com gás. Encetam conversas repetidas e imitam-se num ritual de confortável mímica social. E eu partilho com eles este éter viscoso de nadas somados – não é maravilhoso? Não é estrondoso o murmurar cúmplice de todos eles somado ao meu auscultar? Não somos nós uma família unida em torno daquela mosca que enamora sem pressa o vidro que protege os bolos? Acho que sim, acho que isto são fatias de uma felicidade amorfa e doce como um martini bebido a goles de pintainho enquanto se espera que o tempo desenrole.
E quando estou quase a cair no limbo da hipnose, no nirvana do quase não estar nem aqui nem em lado nenhum, relembro-me que um outro café me espera: o da manhã. Um íman que nos puxa para a a outra rotina, a que me esforço por esquecer, por ser maior que esta, por ser obrigada e não escolhida.
Bem… vou para casa. Amanhã há mais.

quinta-feira, 31 de março de 2011

O combate

Era notória a sua ânsia de chegar ao Lírio, de voltar a encharcar o estômago de cerveja, de álcool, por entre o fumo que o seguia entrelaçado pelas mãos trémulas e amareladas. Desceu as escadas apoiado na mão esquerda que percorreu o corrimão de um vermelho vazio e masturbatoriamente gasto, e atravessou a porta de vidro,
- “António, uma imperial”, balbuciou ainda nervoso.
O lugar junto ao balcão, adquirido por um etílico usucapião, figura esquecida pelos juristas, mas importantíssima nas tabernas, espumava já pelo seu odor.
- “O Jorginho já cá esteve?”, perguntou.
- “Epá, o que é que queres Gastão, não vês que estou a trabalhar?!”, respondeu-lhe o António, num vociferar carrancudo.
- “Vá lá Banderas, não sejas assim, serve-me outra”, e iam deslizando pela garganta funda e sedenta, provinda da parte da sua mãe. O tempo media-se em imperiais, copos cheios e vazios, beatas empilhadas, cinza espalhada pela mesa e pelo chão, e fumo, tudo calibrado pelo olhar esgazeado da razão perdida algures pelo tempo passado.
- “Hoje tenho de festejar, Manel, acabei o segundo capítulo do meu terceiro romance”, disse ao Manel, que o olhava fixamente de sorriso avermelhado na cara.
- “Então sai um beirão para os dois, Gastão”, disse o Manel, já de olhos brilhantes.
Um sabor frio e viscoso escorregou-lhe goela abaixo, como se podia provar pelas veias salientes que naquele momento latejaram de felicidade. O cabelo, de um baço escuro, escondia a congénita tristeza de um miúdo cerceado de infância. Os traços gastos, destruídos, amparavam-lhe os olhos cavados de alma. Não destoava a roupa, uma camisa de um azul clarinho, especialmente clarinho do uso e lavagens excessivos, um blusão de cabedal perdido no tempo e escuro, sujo também, umas calças de ganga, levi’s, rotas em vários sítios, gastas, e uns sapatos de vela castanhos, abertos já.
Avançou num silêncio sóbrio para a porta de vidro e sacou de um maço de tabaco, Marlboro, puxando um cigarro e levando-o nervosamente na ponta dos dedos tremeluzentes até à boca. Depois, viu-se a calmaria do fumo a esvair-se por entre os lábios, por entre os dentes podres e pretos, por entre os pulmões,
- “Arranja aí um cigarro”, pediu-lhe o António aparecido do nada, assustando-o ligeiramente.
- “Toma Banderas”, esticando o maço meio vazio e amarrotado.
- “Traz-me aí outra imperial, António”, pediu-lhe já mais desenvoltamente, após três ou quatro copos que rapidamente se vazaram, perdendo-se no dourado corrente da imperial que ficou a borbulhar gelada.
O tempo passou, fez-se noite, eram já umas dez horas,
“Banderas, traz-me outra”, pediu mais uma vez e os pensamentos esparsos iam-lhe confundindo o discernimento,
- “Gosto do Sócrates, Manel, percebes?!”, afirmou após o tipo gritar em plena Assembleia da República – no telejornal da RTP 1 – que Portugal estava no bom caminho,
- “Ó Gastão e o teu aluno?”, perguntou o Manel mastigado por uma forte rubescência cutânea, enquanto o António se ria,
- “Não tens mão nele, pá”, atirou e entornou um copo de vinho tinto num lento segundo que lhe mascarou, por uns segundos, a vermelhidão em roxidão, se é que a palavra existe.
Dirigiram-se todos para a porta do café, distribuindo depois o Gastão cigarros pelos dois, enquanto o Manel cerrava os punhos e abanava-se desengonçadamente simulando um jab de esquerda,
- “Gastão, olha quem ‘tá a chegar…”, disse, por entre algum cuspo projectado inintencionalmente.
Desci as escadas, abordado imediatamente pelo olhar vazio do Gastão,
- “Jorgiiiinho”, urrou tribalmente quase assobiando por entre os espaços dos dentes perdidos.
Sorri e apertei a mão a todos enquanto entrávamos e já ao balcão pedi um café. Era quinta-feira e, num instinto pavloviano, fui até ao Lírio. Estava ao balcão e reparei numa tipa estranha e concentrada, já quarentona, que acabava de jantar por entre a confusão de guardanapos, azeite, vinho, talheres e pão. Comia mecanicamente e a sua face encapelada de tristeza e sedativos, provava os desgostos amorosos que a mataram. Agora, não passava de um fantasma que se ia arrastando pelo limbo e pelo Lírio.
- “Então Gastão, já estás perdidíssimo?!”, afirmei num tom provocatório de reprovação.
“Já acabaste o segundo romance?”, perguntei-lhe jocosamente mas, ao mesmo tempo, sério.
- “Sim Jorge, vai ser publicado e tu, quando é que ‘abres o livro’?”, disse enquanto me olhava de soslaio e se movia para a frente e para trás de uma forma nervosa e autista.
- “Quando é que perdes o medo?”, disse-me agora num tom mais à vontade de bêbado, sem medos, ainda que as mãos de Parkinson lhe fizessem os compridos copos de imperial planar, acabando entretanto mais uma tulipa.
Enquanto o meu cotovelo esquerdo se apoiava no balcão transparente, que guardava os sólidos bolos do dia anterior, agarrei a colher com a ponta dos dedos e fui mexendo vagarosamente o café, perdendo-me pelo que tinha feito em mais um dia que acabava de passar e pelo que queria fazer na vida. Na verdade, aqueles “quando é que perdes o medo” afectavam-me e afectavam-me brutalmente, abalando sempre e sempre a vida que o passar dos dias ia procurando soldar.
- “Pessoal, vou-me embora, amanhã trabalha-se…”, disse e dirigi-me para a porta,
- “Espera Jorge, espera”, disse o Gastão seguindo-me, quase tombando uma cadeira que se lhe atravessou à gravidade, por esta altura irremediavelmente reduzida.
- “Não posso, Gastão, sabes como é, quem trabalha…”, disse para o picar,
- “Eh Jorge, também não era preciso descer tão baixo”, afirmou num tom meio rouco e comprometido,
- “Tens é de abrir o livro, de perder o medo”,
- “Não sejas cobarde, Jorge”, disse enquanto eu me ia afastando e desaparecia no negro da noite que reluzia nas árvores indolentes.
- “Não tens mão no teu aluno, Gastão”, disse-lhe o António a meio de um cigarro que lhe escondia o sorriso aberto a meio.
Voltou algum silêncio por uns minutos, intervalados por repetitivos,
- “António, tira-me mais uma imperial!”.
A multiplicação dos copos ia pautando o tempo, estendendo e desmantelando-o em milhares de átomos mescalinos, que crepitavam no topo dos copos que lhe iam cortando a respiração e dilatando as pupilas.
- “Vá Gastão, tenho de fechar, ‘tou farto de te aturar…”, retrucou o António enquanto praticamente o expulsava do café, já completamente gradeado.
O táxi atravessou rapidamente a Avenida da República até à rotunda do Marquês de Pombal, por entre duas ou três palavras trocadas com o taxista que se mostrava algo desconfiado, talvez com medo que o Gastão lhe vomitasse a merda do mercedes.
Embrenhou-se no bairro que, embora não estivesse cheio, até nem estava mau, ainda que estivesse composto principalmente por miúdos bêbados e histéricos que iam ganindo e mijando e vomitando as ruas.
Ao cruzar-se com um grupo de miúdas bem mais novas que ele, meteu-se com uma delas, morena, com o cabelo atado e preso por uns ganchos, que devia ter uns vinte anos. Era alta e tinha umas sandálias brilhantes, galou-lhe torcidamente o rabo e as mamas – movia-se despudoradamente nua e claramente sem o consentimento materno ou paterno –, e ouviu um,
- “Vai pró caralho, velho nojento”, num latido estridente, suportado pelo olhar altivo das amigas, meio betas acho, que lhes mascarava pimpinhamente as faces barrentas.
Que puta de miúda, queria-me, é claro que ela me queria, pensou…continuou e seguiu rua acima, até um bar qualquer onde costumava ir, nunca me lembro do nome, mas um bar onde costumam ir muitas gajas, principalmente as bifas, normalmente fáceis. O bar ficava na zona mais alta do bairro alto e a bebida era relativamente barata – as imperiais custavam um euro e os shots custavam um e meio – e a empregada pagava-lhe, de vez em quando, umas bebidas, provavelmente por piedade.
Sentou-se a meio do balcão e pediu,
“Uma imperial, se faz favor”, as palavras saíam já de uma forma arrastada, talvez pelo pesado hálito que as parecia agarrar.
A solidão é incerta e é esmagadora, é verdade, mas fica sempre dependente da bebida que se ingere. Bebeu umas dez imperiais e dois shots de tequilla, de acordo com o que sei, e meteu conversa com uma espanhola que se sentou ao seu lado. Estava tão bêbeda quanto ele e ia balbuciando umas palavras a espaços, de onde conseguiu apenas perceber que era de Múrcia e estava a fazer erasmus em Portugal. Na altura, ficou com a ideia de que até era gira, média estatura, de um moreno altivo que lhe escorria pelos longos cabelos pretos, porém, no dia seguinte, ao relembrar a noite, apercebeu-se de que era um bocado gorda e não tão gira quanto lhe havia parecido, para além de estar excessivamente pintada.
Saíram já de mãos dadas, após uns beijos meio enxertados de tequilla, e foram descendo o bairro, a rua das flores, até – a noção temporal havia desaparecido nesta altura, era como se as horas tivessem sido comprimidas a martelo – a fila para o Jamaica estar já no final. Entraram facilmente, como se uma conspiração cósmica estivesse do seu lado – o escritor falhado – e o tempo fundiu-se com o som, com as cervejas e com os whiskies que iam saindo das mãos dos empregados do Jamaica. A mesma música de todas as noites tocava, corriam mãos por todos lados, a roupa encurtava à medida que o álcool descia, beijos e palavras vazias eram trocados, ouviam-se até urros e sentia-se, principalmente, felicidade e vazio. Ao voltar da casa de banho, onde havia conseguido chegar com dificuldade, a espanhola estava já com as mãos enterradas nas calças de outro tipo qualquer, carregado de gel na cabeça e vestido para engatar qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, no caso a espanhola afinal repulsiva e de beijo fácil e cuja propriedade se caracterizava por uma tremenda volatilidade alcoólica. As luzes intermitentes que os cobriam dançavam sob o corpo morto e pesado da espanhola, que se perdia na boca e nas mãos do tipo anónimo, que pela aparência gostaria, certamente, de ser um Cristiano Ronaldo.
Restava, nesta altura, de um lado, uma felicidade falaciosa e, de outro, o travo da auto-comiseração conjunta de quem não conseguiu acabar a noite acompanhado, o que trespassava que nem punhais os corpos cabisbaixos. Andava à roda, as mãos estavam sujas e pegajosas da cerveja e do whisky que ia vertendo, até que perdeu completamente a noção do tempo e do espaço. As pessoas não passavam de um mosto de sombras que sorria e suava – devo referir novamente que ele estava extremamente feliz, como se tivesse conhecido a mulher de uma vida, a espanhola de uma noite, que afinal preferia sair do Jamaica até um quarto qualquer com o bronco do cinto de brilhantes da Dolce & Gabbana –, até que uns braços enormes o laçaram e pontapearam,
- “Vão pró caralho, palhaços”, gritou, após ter sido expulso sabe-se lá porquê, de uma forma quase imperceptível para os atrasados dos seguranças que iam sorrindo que nem hienas histéricas, mas sempre de olhar ameaçador, legitimado pelo poderzinho em que tinham sido investidos pelo dono de mais um barzinho do cais do sodré.
Meteu-se num táxi, meio em andamento, e sem saber bem como um preto entrou também e pediu-lhe para dividirem o táxi,
- “Sócio, seguimos aqui na boa os dois, para onde vais?”, vozeou, numa ladainha cantada de moamba, o fifty cent das galinheiras. Disse-lhe que ia para a quinta do lambert e que não havia stress,
- “Meu, gosto de ti, és um gajo directo e sem merdas, fruto destes políticos”, disse-lhe perante o olhar de gozo do taxista que, ainda que estivesse com algum medo de que não lhe pagassem a viagem, ia-se divertindo com a amizade do casal de bêbados.
O taxista deixou-os algures no campo grande, talvez os tenha expulsado, o gajo também tinha um ar de trolha filho-da-puta, e o Gastão convenceu o caracol – ao que parece este era mesmo o nome do tipo, já que se apresentava como o caracol da night – a ir até ao Lírio beber um copo antes de ir para casa. Deviam ser já umas sete da manhã de sexta e, pelo caminho, foram-se cruzando com imensa gente carrancuda, quase sonâmbula, que corria para os seus trabalhinhos, uns executivos, outros apenas de merda, até que entraram no Lírio,
- “Manel tira aí umas imperiais para mim e para o meu amigo”, pediu imponentemente, porque um gajo, especialmente quando está bêbado, tem de se impor.
- “Ó Manel orienta aí as imperiais aqui pró caracol da night, o novo amigo do Gastão”, entoou o aprendiz de rapper.
O tipo não tinha propriamente bom aspecto. Devia ter um metro e setenta e cinco, era magro, mas entroncado, tinha o cabelo rapado, ainda que com umas merdas desenhadas ao pormenor no lado esquerdo da nuca, tinha vários brincos de ouro e vestia-se como se viesse do Bronx, pelo menos era o que o gajo provavelmente pensava.
- “Ó Gastão desculpa lá mas a esta hora não sirvo álcool a ninguém, tens de ir a outro sítio se quiseres”, afirmou o Manel claramente a mandá-los embora.
Seguiram aos abraços, como se fossem os melhores amigos, perante o erguer do sol e da luz, até que o Gastão deu um leve soco no ombro do caracol, que levou a mal – o que é normal já que no bairro dele ninguém lhe toca e sai impune – e respondeu com um empurrão, devolvido imediatamente.
No seguimento de mais uns empurrões e de um ‘vai-te foder, meu grande filho da puta’, voou um gancho de direita que, planando pelo espaço, acertou em cheio na parte inferior da face esquerda do Gastão que foi imediatamente projectado, por entre algum cuspo e sangue, para o chão. O tipo correu e, já em cima do Gastão que respirava asperamente, soqueou-o por várias vezes ao mesmo tempo que se desembaraçava dos cotovelos que iam esperneando inconsequentemente e ouviram-se mais alguns esganiçados
- “Filho da puta, parto-te todo”, de um toque de ódio sereno. Multiplicavam-se os enviesados esguichos de sangue escuro, que viriam a provar os hematomas que se ergueram horas depois, e que salpicavam os dois corpos entrelaçados.
Após o mitra ter fugido cobardemente, porque se a luta se tivesse prolongado certamente o tipo teria acabado coberto de porrada – palavras proferidas mais tarde pelo lutador vencido –, o Gastão levantou-se, com a cara toda amassada – o olho direito estava inchado e vermelho e o lábio inferior traçado a sangrar virginalmente –, e foi para casa, fazendo-se acompanhar pelo amanhecer e esmurrado pela solidão da brisa matinal que balançava os ramos das árvores inquietas, dormir e acordar mais uma vez.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ninguém me sabia de volta

Ninguém me sabia de volta. Escondia-me pelas baixas divisões obscuras da velha casa onde me aprisionavam, numa profunda solidão subterrânea, cuja violência intrínseca me ia fundindo com o escuro. Ia vivendo pouco aos poucos, porque o tempo tinha-o perdido. A comida já não sabia a nada, era como se me tivessem arrancado a língua, o estômago era náusea o dia inteiro, vómitos de um vermelho barrento, escuro, o interior das coisas enojava-me. Nem sequer há música nesta história. Eles, em tempos meus pais, já nem nos olhos me olhavam, já nem sequer me olhavam, não passava de um fantasma que lhes infectava a realidade, como se já estivesse morto e enterrado.

Deixei de falar, preferia não o fazer, até porque não tinha nada mais para dizer. Havia passado mais de quatro meses e esbatiam-se as diferenças entre a minha figura e um animal, não passava de um animal. Um animal doente de quem os humanos tinham medo e nojo, inexistindo quaisquer razões misteriosas para tal. Despojei-me de sentimentos e olhava simplesmente em redor. Grande parte do tempo ficava pelo quarto, encarcerado no indistinto, no medo.

Um dia ouvi alguém chegar, a voz era-me familiar, mas tinha alguma dificuldade em perceber quem poderia ser, a realidade e o sonho entrecruzavam-se cada vez com mais facilidade na minha cabeça, corri para a divisão inferior, a dos animais, e calei-me, baixo, enquanto os passos e a voz que conhecia se moviam no tecto que me apertava o tórax e vergava a carne. Parece o João, pensei. Há mais de três anos que não o vejo, o meu primo, uma das três ou quatro pessoas que nunca me julgou por ser diferente e por almejar algo superior, que até me incentivou a procurar e tentar aquilo que os meus olhos viam a mais.

Despedia-me eu por entre a censura de quase todos, o meu irmão e o meu pai que nem sequer tinham vindo, e um abraço sentido dele e da Manuela, sua irmã, lágrimas e promessas de visitas, o comboio rumorejava e cuspia fumo num equilíbrio supremo que pintava o céu de preto, e eu partia para Paris, na busca de outros como eu, na busca do desconhecido, de sentir a arte, labirintos de júbilo, de me tornar escritor, o que quer que isso fosse. Não tinha grande coisa, apenas uns trinta contos de ilusões e amargura juvenil.

A casa era velha e o chão, de madeira negra e cancerosa, gania a cada passo que dava. Não aguentei e corri para a casa de banho para limpar a cara numa daquelas toalhas encardidas e ásperas que me fodiam a pele. Saía eu da casa de banho e ouvi alguém descer as escadas a correr, não tendo sequer tempo de me esconder como me havia sido ordenado,

- Miguel?! Disse o João de olhos abertíssimos como se tivesse visto um fantasma.

- Então primo, há tanto tempo, exclamei num tom sentido, embora tentasse desconversar sob o olhar colérico da minha mãe.

- Deixaste de escrever, nunca mais soubemos nada de ti, as últimas cartas foram devolvidas…replicou num tom desiludido e triste.

- Pois, mudei de morada e entretanto perdi a vossa e como pensava voltar em breve a Portugal…e depois as reviravoltas com que não contamos e acabei por não escrever mais…retorqui nervosamente.

- Mas estás cá há muito tempo? Perguntou-me pouco convencido daquilo que lhe dizia.

- Cheguei há uns dias, mas tenho estado ocupado com imensas coisas e ainda nem sequer tive oportunidade para estar convosco, mas queria visitá-los mal pudesse, desculpa-me a sério…disse-lhe de olhos humedecidos pela sinceridade, agora estragada, que sempre ostentei.

- Vá, vamos, o Miguel está cansado e depois logo põem a conversa em dia, afirmou a tia nervosa e irritadiça, puxando-me para cima, arrastando-me quase, e despachando-me num ápice…

A caminho de casa, numa concentração interior, fui pensando no quão estranho tinha sido aquele encontro, no quão intrigante foi a reacção da tia quando vi o Miguel, pensamentos que iam fluindo enquanto os meus olhos seguiam os pés que iam comendo ordeiramente o lancil gasto e profundo.

Entrei em casa, embora tenha tido alguma dificuldade em descobrir a lassa fechadura devido às mãos que me tremiam ainda. A minha irmã esperava por mim, li-lhe nos olhos projecções avulsas, ar de quem pensava que vinha bêbado pela dificuldade em abrir a porta e todo o barulho que fiz. Olhou-me desconfiada, e disse-lhe,

- Não vais acreditar em quem encontrei! Não vais acreditar, afirmei tremeluzindo a voz, enquanto limpava o suor que me brotava essencialmente na testa.

- Quem? Perguntou-me denotando também já alguma inquietação.

- O Miguel. O Miguel estava na casa da tia. Voltei a ficar nervoso e deixei cair as chaves que pareciam aranhas a querer fugir pelo chão nérveo e apanhei-as com alguma dificuldade. Por momentos a minha irmã calou-se, não conseguia perceber ao certo no que pensava,

- Mas voltou quando? Como soubeste? Perguntou-me de olhos vidrados e turvos.

- Fui a casa da tia para saber quando é que ela queria que lhe pintasse a sala e os quartos e achei-a algo tensa, ouvi uns barulhos estranhos no andar de baixo e desci instintivamente, dando de caras com o Miguel, que parecia estar escondido ou algo do género, foi muito estranho, não consegui perceber bem.

- Hum, e como é que ele está? Perguntou-me num tom agora preocupado.

- Não sei, mas pareceu-me estranho, estava muito branco e magro, como se estivesse doente, respondi-lhe agora mais calmo.

No dia seguinte, resolvemos ir visitá-lo sem avisar. Na verdade, para além dos laços de sangue que nos uniam, éramos amigos verdadeiros desde crianças. Fomos conversando, e fui perguntando mais algumas coisas ao meu irmão, que me foi descrevendo um pouco mais pormenorizadamente a estranha situação, mencionando agora as grandes olheiras que lhe entrevavam a face e a alguma tristeza que lhe arqueava os lábios, arquivando um abismo de pavor. Num instante, estávamos à porta e com três pancadas fortes e secas que torturaram a madeira da porta nos fiz anunciar. Ninguém vinha abrir e voltei a soquear a porta por mais algum tempo. Passados mais de cinco minutos a tia Isabelinha veio finalmente à porta, hasteando um marcado sorriso amarelo, e num cínico e curvado,

- Então Manuela estás boa, há tanto tempo que não te via.

- Sim, vim com o João ver o Miguel, atirei rapidamente tentando despachá-la, que a custo nos convidou para entrar,

- Pois, mas ele está tão cansado, e agora está deitado, se calhar era melhor virem num outro dia, disse num tom não tão convicto como pretenderia.

- Certamente ele ficará feliz por nos ver, e desci agarrando o meu irmão e ignorando o olhar furioso da tia Isabelinha.

Ao descermos as escadas o escuro aumentava, como se nos aproximássemos da treva, um escuro denso e avermelhado, desordenadamente abstracto. Batemos à porta do quarto onde o Miguel estava enclausurado, que num ápice nos abriu a porta abraçando-me chorando.

Conversámos os três por longas horas, e foi-nos contando histórias e histórias de Paris sob os nossos olhos atentos e felizes, enquanto reparava na frágil figura que mostrava, que o meu irmão já me tinha descrito, a magreza tisnada de uma branquidão doente, tiques constantes e nervosos que ora coçavam o cabelo sem brilho, ora esfregavam o nariz, a perna esquerda que não parava de tremer um segundo,

- Até amanhã Miguel, vamos combinando coisas, e vê se tomas algo e comes bem que estás com um ar doente, disse despedindo-me e desaparecendo sob a luz desfalecida dos postes que ordenadamente marcavam a estrada de volta.

Era noite de sábado e resolvemos sair, eu e mais um casal de alemães, a Hannah e o Jurgen, havia uma festa, diziam óptima, na fabrique rouge, e como conhecíamos os porteiros e a Julie do bar, facilmente entraríamos. Saímos de casa, já condignamente regados, alinearmente e rindo alto pelas ruas sujas e brilhantes da Paris dos anos setenta, a Paris dos sonhos e alucinações de todos os artistas, a Paris de um valor erótico que se deixava comer em troca de um conhaque (a vil ciência), a Paris vulcânica que cantávamos elipticamente e nos guardava terrivelmente os desgostos. Chegámos à enorme fila e, depois de ter pedido a um dos seguranças que chamasse a Julie que nos recebeu com gritinhos histéricos e abraços, rapidamente entramos.

A música estava óptima e continuamos a beber, eu estabeleci-me nos gins tónicos e os alemães no vodka, até que o tempo e o espaço se começaram a confundir, o ar pesado e suado apertava-me a cabeça, e a coca que tínhamos snifado antes de sairmos de casa empurrava-nos para a pista, que tresandava a feromonas, a tesão, e dei por mim numa espiral química a dançar envolto numa corpografia alongada com uma tipa hispânica, despida num vistoso vestido vermelho, que já tinha visto por duas ou três vezes pela Noite, e que me segredava ao ouvido ordinarices em espanhol, enquanto as minhas mãos lhe sentiam descaradamente as ancas e as nádegas e todas as formas imóveis que lhe tremiam.

Acordei, seguíamos aos beijos num táxi a caminho da casa dela pareceu-me, quase nos comendo por ali mesmo, sob os olhares furtivos do taxista atiçado que nos ia espiando pelo retrovisor com a mão esquerda no bolso embora não lhe desse muito jeito. A minha razão era coca e gin naquele momento, a minha razão era a testosterona que cuspia pelos poros que ardiam, obstruídos de suor, de sémen, e saímos do táxi, percorrendo-lhe as minhas mãos todas as partes molhadas do seu curvo e malévolo corpo, enrodilhadas pelo encharcado vestido vermelho cada vez mais curto, sempre manuseado pelos meus longos e sábios dedos. Fomos derrubando portas e móveis e perdendo roupa até que entrámos em casa, libertando o espaço, e depois de lhe arrancar o vestido e já erecto como poucas vezes, bombeando litros de sangue a cada batida cardíaca para o pénis inchado e vermelho, encostei-a a uma parede despida e branca da sala que nem conhecia, de costas voltadas para mim e penetrei-a com força, enquanto a agarrava e cravava as unhas cada vez mais quanto mais a fornicava. Os gemidos aumentavam e sentia torrentes de suor correndo-nos os corpos, fazia um calor tremendo naquela noite, os movimentos aumentaram o ritmo pautados pela sua respiração anelante que me ia ouvindo ofegar ao ouvido e viemo-nos ao mesmo tempo num caudal de líquidos que nos inundou as entranhas e as pernas, alimento brutal, numa explosão de êxtase, de um estranho êxtase ao sentir subir um raio que me consumiu todas as veias, todo o sangue, uma estranha infecção que senti naquele momento, a semente de destruição que me matou naquele preciso momento, devorando-me de dentro para fora, espalhando morosamente o vírus por todos os recantos e recessos do meu corpo, cravando-se em todo o sangue que me jorrava agora morto. O vírus encarnado engoliu-me ali mesmo.