Acordo com aquela sensação de já não haver nada mais para dormir, e ainda assim muita vontade de continuar a brincar com a frescura do lençol, a enrolar-se nos pés, a deslizar nas mãos. Sentir o corpo a afundar-se no corpo, libertar-se em micro sonos, para voltar a acordar e de novo afundar – até se cansar.
Domingo, eu sei-o. Sem calendário, sem aviso, sem lembrança. Basta ouvir a minha mãe, já na cozinha a lutar contra vapores de panelas, legumes a cortar para a sopa – esse sabor que nunca consegui reproduzir depois de tantas cópias falhadas que se seguiriam num futuro distante. O som indistinto, subaquático, da telefonia em amplitude modulada, a trazer músicas do fundo do último naco de transistor, a embalar o vai e vem da faca nas batatas, e ela a cantarolar por cima naquele mmm aveludado que só uma mãe a sério sabe fazer.
Pela janela entram farrapos ordeiros de luz, envoltos em nadas de dez da matina. Luz própria de um verão preguiçoso por começar, filtrada pelas folhas dos limoeiros do quintal da vizinha Adelaide, árvores embaladas num sono de brisa mole.
Existe um falso silêncio, de passarada a ressacar, piando aleatoriamente em contraponto com uma ou outra coisa que lá fora acontece: uma ladainha de mundo à espera de acordar, enrolado nessa luz preguiçosa. Por isso eu sei, é Domingo.
É dia de desenhos animados em pijama, olhos em cima da televisão, muito perto para não escapar nada, bulha de telecomando com a irmã, apesar de querermos mais ou menos o mesmo. Não pense ela que por ser mais velha por dois anos que tem muito mais a dizer sobre o que ver ou não. Que se perceba que o programa matinal de Domingo está previamente definido desde a origem dos tempos, quando os telecomandos ainda não existiam, quando a cor televisiva era uma vasta paleta do cinzento muito escuro ao cinzento muito claro.
Os desenhos animados, sempre precedidos de pequeno almoço digno da recepção ao embaixador de mais-que-além. Um mimo que sempre me fez falta desde então, coisa que só voltaria a sentir ao de leve quando pernoitava em hotel caro, mas sem o calor que só as coisas feitas com carinho têm. Fatias douradas, acabadas de fazer enchiam a cozinha de um cheiro mágico, acompanhadas de leite com chocolate, bem quente, independentemente da temperatura do ar. Fatias douradas são aquele fio de Ariadne que liga essas manhãs às outras menores manhãs em que como um simulacro muito mal amanhado de fatias na pastelaria. Invariavelmente acabava sempre por acontecer a fuga de uma ou duas fatias para a sala, a fazer-nos companhia no televisionamento das aventuras de leões que falam, unicórnios que voam, e outros seres muito coloridos, muito impossíveis, mas totalmente necessários. Fico sempre com a sensação de que poderia ficar mais duas, dez, vinte horas a ver bonecos a explodir, tartarugas a lutar com bandidos, coelhos a detonarem lobos, patos milionários e o mais que houvesse.
Mais ou menos pela altura em que o cheiro da comida começa a invadir as divisões da casa, cavalo de tróia pronto a trair os estômagos em dieta, aroma embrulhado em luz forte de meio-dia, chega o meu pai. Homem robusto, de pouca conversa mas de sorriso largo. Larga sempre as chaves um pouco à bruta na base da fruteira, um daqueles aparatos de loiça que serve para largar tudo menos fruta: isqueiros, chaves, contas da luz, contas da água, pilhas, postais… e todas as outras coisas que se largam, que não têm bem um sítio próprio, mas que convém estarem sempre à mão, mesmo que depois sejam eternamente esquecidas.
O pai Valério tem sempre uma brincadeira pra nós, coisa de macho carinhoso: um calduço, uma rasteirita, uma valente carga de cócegas… deve ser como aquelas coisas que se vê nos programas sobre chimpanzés, a seguir aos desenhos animados, reforço de laços familiares… mas sabe bem. Entra na cozinha, com a sua voz ressonante, como se fosse uma linha de baixo de música soul, e troca algumas palavras com a minha mãe. Sempre tiveram uma relação que irei invejar daqui a alguns anos, e por muitos anos. Pouca conversa, muito eficaz, brincadeiras pequenas, muito físicas, beliscões, apalpões, risota miúda, entendimento total.
Quando o meu pai entra em casa, entra com ele um cheiro a ervas aromáticas, como se fosse o tempero final do cheiro dos cozinhados da minha mãe. Um cheiro a coisa que veio e voltará para a Natureza, que aliás nunca se separou verdadeiramente dela e que me custará tanto devolver a Ela.
O almoço de peixe assado não é só peixe assado. É risota sobre a espinha que fica pendurada no bigode do pai, não esquecer de não pôr os cotovelos na mesa, discussões acesas sobre se quando a hora adiantar irá roubar horas ao sono, apesar de todos os anos a contabilidade ser igual, grandes talhadas de melancia comidas com pressa tal que geram pequenas batalhas na laringe. O rádio continua lá no fundo a cantarolar qualquer coisa indistinta e nebulosa a acompanhar o estalar das últimas brasas de carvão na grelha. E há vinho, e há azeite e pão, e azeitonas… e tudo isto é um domingo.
Levanta-se a loiça e quase que se ajuda a mãe, sempre de olho na escapatória para mais umas horas de brincadeira, aproveitar bem que amanhã há escola outra vez.
Fui à casa de banho e reparei pela primeira, mas não seria a última, uma mancha vermelha, deslavada, pequena, nas cuecas. Nesse dia ainda não o sabia, mas hoje carrego dentro das entranhas a prova que tinha ultrapassado o primeiro nível desse jogo inglório que é viver.