terça-feira, 5 de maio de 2009

Implicações estéticas da medicina legal

Um cadáver bonito. É estranho, nunca pensamos nisso. Mas se pensarmos nisso sem revermos um futuro a adiar pode haver beleza nisso, não? Se analisarmos o objecto em cores e forma, um tema de fotografia, um quadro impressionista. Quem pode negar a beleza de uma papoila desfeita pelo vento? De uma ruína de uma igreja? Quem pode afirmar com absoluta convicção que não vê beleza num destroço de uma traineira, num cemitério de carros, no rescaldo de um incêndio? Apenas não temos a frontalidade de o dizer, às vezes nem tanto pelo que significa, mas mais pelo que implica.

O pai do Tó Manel era um cadáver bonito. Isto dito pela boca do filho, dito pela articulação mórbida do maxilar, meio adormecido pelo whisky que supostamente transforma o almoço numa coisa digesta. Nunca esperei ver tal metafísica escorrer pela boca de alguém que friamente e sem outras considerações apenas somava dias aos dias, pela força do hábito de acordar para trabalhar. Mas se calhar é isso que acontece a quem não semeou sentimentos em si. Resume as coisas aos factos. E os factos a coisas. E vai somando-os. Mas afinal a contabilidade dos dias lá lhe deu um sentido de estética, o suficiente para apreciar o cadáver do seu pai. Sabem o que o povo diz, se te queres ver daqui a uns anos, olha para o teu pai… Se calhar a consideração do Tó era apenas uma vaidade superlativa, embrulhada numa metafísica piedosa, mas vaidade na mesma… Mas eu sei que o Tó até era um bom ser, um bom colega de trabalho e em última análise um amigo disponível no tal momento que ninguém espera, em que todos falham.

Eu gostava de entregar um cadáver bonito. Não por querer morrer novo, estão tolos? Não por querer morrer extremamente sadio, o corpo é para gastar. Pela estética em si. Pela beleza que isso poderá ter. Mas mais importante do que isso é não ter um filho que o diga daquela maneira. Ou se o disser que o diga com carinho. Ou se o disser sem carinho que o guarde para si. Qualquer coisa… ou então não ter filho… qualquer coisa.

Aquele início de tarde no restaurante e o cheiro volátil do whisky abriu-me uma gaveta da memória. Uma gaveta poeirenta e perra, daquelas que só abrem aos solavancos. Mas abri-a.

Lembro-me claramente, da pele inanimada e lisa. Do olhar vidrado, sem rugas. O Miguel Luís era um daqueles rapazes que se fazem homem aos 17. Aos 18 fuma e bebe e compra uma grande mota. Uma mota vermelha, reluzente, potente, incontrolável. O Miguel Luís era um mocinho orientado, poupado, uma mota, um part-time jeitoso, uma namorada, uma rapariga doce e enérgica. Mil beijos de manhã no intervalo da escola… porque o Miguel Luís ainda andava no Secundário… a escola não era o forte do carateca. Estudava, só que devagarinho – e ainda bem que não desperdiçou tempo com isso. Um dia de manhã quis estar com o Miguel Luís, mas tive que estar com ele sem ele estar comigo. O cemitério lá da terra não tem morgue propriamente dita, resume-se a uma salita de mármore frio e de cheiro duvidoso. O Miguel Luís viveu 18 anos 4 meses e 6 dias. A cabeça não controlou a mota. A cabeça rachou contra um camião. Nesse dia não o vi como profissional, ainda não o era. Miguel Luís era meu colega na turma de Saúde.

A gaveta da memória é traiçoeira, a dor transforma-se num sabor metálico no céu-da-boca, como sangue dum lábio mordido, mas aceitável. A fúria ganha metamorfoses de cheiro e permanece como um perfume intenso de mar no fim de noite, mas de certo modo agradável. E assim, tudo aquilo que nos esforçamos por esquecer, acabamos por relembrar com carinho. A nossa memória é movediça, falsa e movida por interesses que me escapam completamente – e lá dou por mim a recordar do menos importante como se fosse o dia da minha vida e a esquecer as datas de aniversário dos que chamo de meus.

A senhora Madalena era um monumento à persistência. Persistência em levar a dela adiante, pela própria mão, em resolver a vida como ela queria, sem interferências. Falava com ela o mínimo que é necessário falar. Quero dois pães. Quero dez papo-secos. Mas aquela força viva da natureza, sempre indeformável, de tal modo que até as rugas pareciam falseadas na luz do rosto, chegou ao dia trezentos e quarenta e dois do seu septuagésimo nono ano e decidiu. Hoje era um bom dia. Um bom dia para morrer, até estou calma e bem-disposta. E então molhou a mão esquerda, descalçou o pé direito e agarrou-se ao cabo do interruptor da padaria. Ela via aquele cabo ali há tanto tempo… sem uso… uma ponta com fita isoladora. Bolas, há que dar serventia às coisas. E deu. E deixou um corpo teso, forte. Esse sim um morto bonito, livre e determinado até ao fim. Não que concorde com a escolha, mas há que admirar a tenacidade.

De há uns anos para cá decidi não perder mais tempo a definhar com o porquê, o quando e o como. Decidi que todo o tempo que me resta será gasto a celebrar o aqui, o agora, o que estiver a ser, o que tiver de ser.

Não sei, e sei que nunca o saberei, se algum dia vou ser personagem de uma gaveta especial de alguém, nem sei se isso importa muito. Mas é claro que não vou negar que gostaria de, a persistir numa dessas gavetas, aparecer com um corpo bonito, teso e radiante. Mais não seja para o caso de ser o meu colega  Tó a me fazer a autópsia, que o faça com um prazer estético mais elevado. Eu faria isso por ele.