sexta-feira, 19 de junho de 2009

O regresso do meu irmão

Hoje até está menos frio. O Verão aproxima-se, puxado por um final de dia vermelho nos fios de nuvem que ainda sobram. Já não devia estranhar estas coisas do ciclo do clima, afinal ando exposto ao clima há tanto tempo… mas creio que é pelo meu renovado espantar nestas miudezas que ainda me mantenho.

Tenho dormido neste sitio já vai para umas duas semanas. Não é mau de todo: o banco de jardim até é dos mais largos, daqueles antigos, pés de ferro forjado, enrolados, ripas de madeira, espaçadas mas não muito, apenas o suficiente para marcar as costas.

Os estudantes ficam até tarde aqui na rua, lá aparece um outro colega de mendigagem e de bebedeira, enfim – desenrolam-se os dias com um pouco menos de solidão. Mas, como sempre, começo a ficar farto desta cidade, das suas repetições, dos cheiros conhecidos e das caras tornarem-se familiares - e tenho que ir para outra. Porque a minha companhia é esta solidão, esta solidão que renovo. É um jogo, um jogo de orgulho e de fuga, que persiste até eu achar que o venci.

Imaginem só que no outro aproximou-se de mim uma senhora da minha idade, dessas que imaginam que são modernas, e deu-me os bons dias. Na altura nem percebi o que se estava ali a passar, mas no dia que se seguiu a conta apareceu-me feita em frente aos olhos – ela já se tinha familiarizado com a minha presença ali de manhã. Mas onde é que isto vai parar? Daqui a nada quer saber o meu nome, não? A vantagem de se ser vagabundo é, acima de todas, essa mesma: anonimato. Eu não sou ninguém, não interesso a ninguém e não valho nada para ninguém. Imaginem que esta pobre alma começa a ter pena de mim! Mas não estou a falar da pena medíocre da qual vou vivendo, disfarçada de misericórdia, mas sim da autêntica, preocupação real, não com a sua consciência mas com o meu estado. Inadmissível! Amanhã já não me apanham neste banco! Tenho que ver o outro jardim que fica na outra ponta da cidade… Ou então rumar para outra cidade, sim… isso ainda será o melhor.

É verdade que já me custa a idade a avançar e a energia a desaparecer. Já não é tão fácil pegar na trouxa e partir pelo alcatrão até à próxima cidade, ainda me dá aquele gozo, mas o corpo já reclama. Cinquenta e dois anos não são vinte e dois. E tendo em conta que decidi não ter número de segurança social, não posso ir ao médico… até que para ir ao médico tinha que dizer o meu nome: e isso seria inadmissível… acho que já o tinha dito. Mas sim, confesso, chateiam-me certas coisas da vida de vagabundo… não lavar os dentes, por exemplo. Isso aborrece-me de morte. Aprendi um truque com os pretos na televisão: um pauzinho de árvore meio verde, resolve a coisa. Sofro com a falta de entrar num cinema – eu antes via cinema todas as semanas. E gostaria de ter um sítio para ter um cão que me estimasse e que o estimasse. Mas não se pode ter tudo…

Então parto amanhã, está decidido. Mas hoje vou ficar a aproveitar o ar quente de verão que escorre das folhas das árvores até ao chão, transportando um cheiro de trabalho vegetal imenso, um suor vivo e verde. Eu aprecio estas coisas. Coisas poucas e soltas que o mundo me dá. Não preciso de televisões, confusão diária de sons e de notícias, governos que se desmancham, aviões que caem. Não preciso de novelas falseadas em planos meticulosamente iluminados, porque sorvo as reais, bem mais trágicas e intensas, sem maquilhagem nem decor.

Saboreio coisas pequenas, mas quando as saboreio finjo para mim que são cerejas importadas com gelado de menta persa e pepitas de chocolate negro. Coisas como assistir a uma luta de pardais pela fêmea. Dois gatos a brincarem com a rega automática do jardim. Três crianças a maltratarem o avô com as habituais perguntas metafísicas.

É impressionante a quantidade de coisas que ouvimos quando dormimos num jardim. Amantes a discutir. Namorados a planear. Estudantes a desconversar. Bebedeiras imensas de quem chega a uma hora da noite que já julga puder falar sobe a metafísica das coisas, bebedeiras imensas que transformam o surdo num connoisseur de solos pentatónicos e inversões de acordes. Sorvo essas conversas para mim. Não há assim muita disponibilidade para ir ao teatro, ver novela no café implica consumir e ler só mesmo restos de jornais no inverno, mas já me deixei disso – dá um ar muito decadente. Por isso estas pontas soltam de conversas na rua são o meu entretenimento, a minha diversão miúda.

Por vezes, raras mas suficientes para manter a chama da curiosidade, oiço conversas verdadeiramente dignas de serem impressas, em times new roman, justificado, espaçadas a linha e meia. O meu ouvido já não ajuda tanto como dantes, mas ainda assim recolho muita coisa que aponto no meu único pertence, a única coisa que realmente amo como se de algo mais que uma coisa fosse: o meu livro de conversas. Aponto-as logo, se tiver lápis, ou quando este desaparece ou se acaba, sacrifico uma ou duas cervejas para comprar o próximo.

Há quem se dedique à caça, quem se dedique á fotografia, quem se dedique a filatelia… eu colecciono conversas. Com sorte, numa época boa, apanho umas duas boas conversas num mês. O verão facilita mais a caça, as presas andam mais soltas, mais falantes. As melhores são geralmente aquelas em que os falantes já estão alterados, pelo sopro de Baco, ou de esses outros deuses modernos, mais sintéticos. As pessoas falam sem pensar, o que ajuda a que seja ao espírito a falar.

Desde que ando nesta vida, desde que abandonei a outra que tinha, já enchi dezoito cadernos de conversas. Guardo-os todos na única coisa que possuo neste mundo – a minha mochila. E um dia espero voltar à casa dos meus pais, que de certo já lá não vivem, tomar um banho, comer um bife, e depois destes luxos dizer à minha irmã, se ela estiver lá, ou ao meu irmão se ele tiver paciência: toma, imprime isso, põem na net, qualquer coisa. E reformar-me…

E pensando bem… é amanhã. Amanhã volto para casa

quinta-feira, 18 de junho de 2009

infância Perdida

As idas a casa são sempre estranhas. Talvez porque já não seja casa como foi. Fico, de certa forma, esquivo e de olhar fundo. Corro aos repelões de um lado para o outro e vou atafulhando as malas de roupa suja e tupperwares ainda besuntados com restos de comida velha, que por lá se foi cravando. Fecho tudo, as persianas batem ruidosamente e sacodem o pó, olho uma última vez para me certificar de que tudo está em ordem, e o escuro que toma o quarto enche-me o estômago de um desabitado enjoativo. Não tenho tempo para pensar e, enleado no puzzle dos fios dos headphones que me namoram as orelhas, ouvindo compulsivamente um estranho álbum dos The Books, vou correndo atrapalhado pelo metro até à estação dos autocarros, carregando um aglomerado de malas e livros e jornais que compro pelo caminho e encalhando em desconhecidos que me fitam furtivamente.
Gosto de viagens. Gosto essencialmente da calmaria que encontro nas viagens de autocarro. Desapareço no fundo do autocarro e sento-me junto à janela, que me vai contando histórias fugidias, por entre árvores e casas e pessoas que desaparecem rapidamente, perdidas nas cores esbatidas e espantadiças que, ao longe, no horizonte, implodem lentamente. A televisão passa a merda de um filme qualquer que berra tiros no ecrã, uma comédia de acção – “Hora de ponta” – ou algo género, tento ignorar e adormeço, aos poucos…
É estranho chegar a casa depois de algum tempo de ausência. Paro por momentos, e observo o prédio indelicadamente suburbano que me pariu, vestido ainda com a tinta rude da altura, e fico imbuído num sentimento alto de apatradismo, talvez com vontade de não entrar em casa. As minhas coisas, antigas, fedem um aroma que desconheço, como se já não fossem familiares. A casa está vazia, deixo tudo espalhado pelo chão e estendo-me na cama de barriga para cima e os braços colados ao corpo. A sensação é estranha, como se estivesse a dormir novamente pela primeira vez naquele sítio. Apetece-me fugir, desaparecer, perder-me no verde-escuro tenso que a vista do meu quarto esconde lá ao longe. As nuvens, carregadas de um cinzento danado que ameaça bolçar água e trovões, fitam-me de esguelha, reconhecendo-me de outros tempos.
Resolvo visitar a minha avó e sigo, rumo à minha infância, por um carreiro de terra batida e pedras a espaços, que vou pontapeando e acertando no espaço, agora um pouco diferente, mais largo e comido. Sobrevivo. Movo-me pela paisagem temperada com carros velhos plantados pelas valas que foram crescendo ao longo dos caminhos, ali deixados pelas bebedeiras dos cromos rebeldes e heróis que me fascinavam na altura, que já fazem parte da própria vegetação, cascalho escorregadio e perdido e erraticamente tresmalhado, ovelhas sujas perdidas pelo pastor que morreu bebido de aguardente atrás de uma moita qualquer, pequenos animais cobardes que ao mínimo ruído desaparecem num instante na negridão de folhas mortas e secas que vestem partes da estrada, viajo no tempo, a cada passo que dou, recuando aos sítios que conheci ainda criança.
O voltar a casa por vezes é difícil de parir, a sensação que me fode as entranhas é diferente de todas as outras. Arrasto os ténis sujos e os atacadores desmazeladamente soltos pela terra, apatia que agora sou, e, ao começar a tocar no ipod a The rat dos The Walkmen, cedo avisto novamente casas, de um branco vertical que encandeia, cães de pelo arraçado, irritados num cio de metáfora, que limpam a calçada cagada pelo cagaçal das galinhas desgrenhadas que vagueiam estupidamente sem rumo e comem restos de melancias vazadas pela calçada e de pedaços de esferovite deixados ao vento, velhos quase mortos que se arrastam pela sombra dos bancos, exterminados por relógios em forma de pistola, e pouco falam e reconhecem-me de soslaio, - o neto do outro, aquele que foi para a capital, entro numa ruela que conheço como a palma da mão, quantas vezes sangrada dos tombos de criança, e sorrio.
Irrompo casa adentro depois de pontapear o Morais, todos os dias mais velho e de olhar oco, já sem a jovem vontade dos bordéis caninos que o faziam desaparecer durante semanas, que me reconheceu logo, abanando a cauda e erguendo-se para me receber ganindo sentido, e grito
- Ó avó!!! Berro que percorreu rapidamente todas as divisões da casa agora desabitada.
- O meu neto!!! Não sabia que vinhas tão cedo. Há tanto tempo que não vinhas à terra, há tanto tempo que não te via João, desde que o teu avô morreu, respondeu-me sorrindo de lágrimas atrás das lentes amarelas dos velhos óculos que conheço desde sempre.
- Pois, avó, sabe que com o trabalho é complicado vir cá ao fim-de-semana e estes últimos meses têm sido complicados…digo-lhe enquanto me descalço e abalroo o sofá que expele uma nuvem de pó que vai planando o ar vagarosamente, tusso duas ou três vezes e vou contando como avança a carreira e a namorada e todas as insignificâncias que significam neste mundo e oiço as amarguras de uma vida, talvez, demasiado comprida…
- Ai que já não vou ver o meu neto casar, que pena, diz-me, num tom de pesar, enquanto retraça maquinalmente uma chouriça, com os dedos eximiamente entrelaçados entre a carne de sangue e a navalha.
Como uma omeleta, usando a côdea do pão caseiro como faca, é assim que ensinam os bons modos na terra, e mastigo furiosamente sem pensar em nada. É peculiar a cumplicidade que me liga à minha avó, muitas vezes mãe, mesmo com as muitas ausências que a vida e os diferentes tempos impuseram. O silêncio emaranha-se no fumo baço que o fogão, despido, vai cuspindo, e vejo o brilho do orgulho que os olhos cansados da minha avó carregam.
- A tua avó está muito mal, já nem vejo nada vê lá, apanha lá essa agulha que está aí no chão João ou ainda furas um pé, diz-me ironicamente franzindo a cara.
Sorrio e apanho a agulha perdida pelos mosaicos pintados aos losangos cor de vinho que vestem o chão da casa,
- A avó vê melhor que eu, que sou mais cego que uma toupeira, digo-lhe piscando um olho.
O jantar aparta-me da realidade, concentro-me de faca e garfo empunhados e ruidosamente vazo o prato que, depois de lambido, brilha de uma forma quase obscena, não há ninguém que cozinhe como uma avó. Repito, embora a pança já pese de cheia,
- Come filho, estás tão magrinho, lá em cima não tens ninguém que te trate como a tua avó, não é?!
O tempo fugiu e resolvo não sair, não me apetece reencontrar ninguém do passado. A casa reanima as lembranças que julgava afogadas, as gaiatices que fazíamos, memórias encravadas e densas que nem uma pasta cremosa,
- João, dá-me um bocadinho de chocolate para experimentar. Sabes, nunca comi chocolate e gostava de experimentar, tenho a sensação de que não passo da noite de hoje filho, disse-me enquanto afagava a cabeça com o esquelético indicador direito.
- Não diga isso avó, está ai rija, ainda há-de comer muitas tabletes de chocolate, digo-lhe eu enquanto parto uma tablete de chocolate com nozes que tinha comprado no Lidl. A expressão de descoberta e satisfação juvenil na cara da minha avó, que mastigava com dificuldade, fez-me viver.
A noite foi de um quente que estala os poros e pára o mapa sinuoso gravado em bolor no tecto. Os pássaros mansos calaram-se e abotoaram-me os olhos e as pálpebras tímidas. Quando acordei, um cheiro estranho a decesso abastava o ar, inerte e doente, um punho apertou-me o coração e o estômago empalideceu, corri para o quarto da minha avó, que ainda estava deitada, tapada pela escuridão que lhe carcomia o rosto às escondidas. Estiquei os dedos cautelosos e ao tocar-lhe a pele arroxeada senti as vísceras jorrarem gelo. Senti a loucura e a melancolia embriagarem-me as pupilas que dilataram.
Corri por entre os gritos luzidios da ambulância que estacionava atravessada e voltei em silêncio, vagando pela tempestade inclemente que afundava navios e engolia mar, a minha infância, na falta de uma última piada que afastasse a morte, acabava de morrer-me.

A menina que gostava dos sábados

Era sábado, o melhor dia da semana. Brincava com as bonecas espalhadas geometricamente ao longo dos tacos riscados do chão do meu quarto com mais gosto e tudo. As discussões e os gritos não interessavam ao sábado, porque era dia de jantar no Real. O brilho de criança nos olhos raiava-me nas córneas que até inchavam de ansiedade. Na noite anterior tinha tido dificuldades em adormecer porque o meu pai não chegava e a minha mãe dizia que estava doente e estava na cama a soluçar, e eu, sabendo o que ia acontecer, não conseguia dormir e chorava também e sentia coisas que não sabia explicar, ficava perdida no fundo das mantas, atenta, sempre atenta, no silêncio agitado da noite e agarrava com força um mosto de lençóis e mantas bem lá no fundo, sufocando vagarosamente com a espera. Ouvi as chaves que tentavam abrir a porta, embora com dificuldade, riscando a fechadura e a porta, e sabia já - ele vinha bêbado, um estrondo enorme e levantei-me, arrepiada com o frio que a noite tinha plantado, vi a minha mãe avançar com certeza, acendendo as luzes, e ele, estatelado no meio do corredor, lá se tentava levantar cuspindo um bafo hediondo a podre e a álcool, arrastando até à casa de banho o vómito que escorria aos esgarrões, e os gritos começavam,

- ‘Tou farta disto, qualquer dia pego na miúda e vou-me embora, és um bêbado de merda, e eu ficava especada, a nadar num pijama amarelo às flores que vestia sempre, com uma vontade enorme de chorar, sem perceber sequer o porquê e voltava para a cama e tentava tapar os ouvidos na esperança de não mais ouvir e ver e de que tudo não passava de um pesadelo. E, já na cama a fitar o escuro do quarto e as sombras que dançavam à vez por entre os apertados espaços que a persiana mostrava, chorava aos poucos, e tinha dificuldade em adormecer. No dia seguinte, limpava as lágrimas que sobravam da noite anterior e os soluços iam apagando-se devagar, e tinha sempre vergonha, sabia que os vizinhos ouviam, que os vizinhos sabiam, e ia para a escola de cabeça em baixo, seguindo ordeiramente o passeio encovando o olhar e o pio, dissimulada por entre os espaços que o dia eclipsava.

A tarde correu ainda mais depressa que eu corria pelos corredores do apartamento, apertados para as minhas pernas que cresciam minuto a minuto e estava quase na hora. O meu sorriso, agora descoberto, era gigante, uma enorme meia-lua que revelava a vaga dos dentes da frente partidos no recreio e a traquinice de uma infância solitária, que me comia a face temporizadamente. As discussões que me atroavam os ouvidos e faziam chorar às escondidas na cama, o não perceber o porquê daqueles gritos ensurdecedores e constantes, eram completamente esquecidas ao sábado.

O dia anoiteceu num instante e dei por mim já a vestir-me, um vestido lindo, rosa e branco e às borboletas sopradas, que a minha avó tinha trazido dos Estados Unidos, sentia-me importante, e lá fomos todos, num silêncio cortante de família funcional, encontrando ao acaso pessoas amigas, que me afagavam a cabeça como se de um rafeiro me tratasse,

- Está tão crescida e é tão engraçada, e lá ia sorrindo cinicamente, apesar de na altura não saber o que era o cinismo, e apenas ansiava pelo grande momento, por mim íamos a correr, até chegar ao restaurante do aquário descomunal e do senhor preto das bochechas gigantes que soprava vendavais para um saxofone dourado e gasto, lançando notas soltas e tempestivas, que já na altura adorava. Era o dia mais feliz da semana, o único, era o dia mais feliz da minha vida. Adorava brincar examinando hipnoticamente os camarões gigantes que vagavam lentamente na água, movendo-se sempre aos enxames, como se o tempo quebrasse, arrastando as turqueses desproporcionais para onde quer que fossem e que me fitavam esbugalhadamente. Éramos os melhores amigos, era capaz de ficar simplesmente a olhá-los durante horas, dias se pudesse.

Comia sempre o mesmo, longos bifes de carne de vaca que dançavam na brasa, espantando todos,

- Como é que uma rapariga tão magrinha como tu consegue comer tanto, diziam, e eu sorria satisfeita com o meu grande feito, e exibindo a ausência dos dentes da frente que nem uma velha caquéctica que masca com as gengivas. Os meus pais pouco falavam à mesa, com a excepção de quando discutiam, mas eu não me importava e ia brincar com os meus amigos vermelhos que tresandavam a mar. Ficava horas sentada a olhar para o aquário imaginando-me sereia a nadar mar fora com os meus amigos, enquanto rodava a cadeira giratória, onde me sentava sempre. Adorava as cadeiras giratórias, todas as cadeiras deviam ser assim, giratórias, e girava, girava furiosamente até ficar mal disposta, sempre, com o cabelo a esvoaçar pelo restaurante aos gritinhos de felicidade. Havia homens aparvoados que nunca saíam do balcão e, por vezes, olhavam-me com um olhar estranho e brilhante e sorria-lhes inocentemente.
Não conhecia o meu pai, era distante e pouco falava, excepto quando vinha bêbado, dizia a minha mãe, passava a vida entornado nos sofás e estava sempre chateado com tudo. A minha mãe era triste e estava sempre fechada no quarto, na treva, ciciando murmúrios imperceptíveis falando sozinha que nem a velha louca que vivia no segundo andar, enquanto eu brincava sozinha na sala, perdendo as tardes em frente à televisão a ver todos os desenhos animados e séries que passava ou enterrada em enciclopédias e livros que ia coleccionando meticulosamente.

Mas era sábado, o dia pelo qual eu esperava sempre durante a semana inteira num desespero jovial, olhando milhões de vezes para o meu relógio em forma de concha que tinha ganho no Natal passado, aquele em que jantávamos em família, como uma família. Os gritos do saxofone eram loucos e deixavam-me as mãos e os dedos a marcar tempos desenfreadamente, trauteando a madeira dura das mesas do restaurante e abanando a cabeça. Quando se mudava para o órgão, ficava triste e feliz ao mesmo tempo enquanto o ouvia, sempre atenta aos seus tiques, que me divertiam, esboçados enquanto tocava numa calmaria que estilhaçava vidros. Era a única pessoa preta que conhecia, para além dos que via na televisão, mas não me importava e adorava ouvi-lo a tocar. A noite acabava já o meu pai estava com a face enrubescida, quase parecia uma das lagostas, com as órbitas a nadar em álcool, e falava languidamente com toda a gente, como se fossem os seus melhores amigos, e íamos para casa porque a minha mãe queria, apesar de eu e o meu pai querermos ficar.

Estou frente à porta do velho restaurante, agora fechado por umas tábuas comidas de caruncho que vai trabalhando a madeira num ruído de máquina metálico e mal pregadas, e uns papéis, de um branco sujo, dizendo trespassa-se. Lembro-me de tudo isto com uma precisão tal como se fosse hoje. Gostava de ser criança outra vez, de poder voltar atrás e não mais crescer, de partir os dentes e não me importar com mais nada, apenas sentar-me em cadeiras giratórias e girar, girar e girar pelo tempo fora até desaparecer nos entretantos do espaço.