quinta-feira, 19 de março de 2009

A caixa.

A caixa estava fechada. Fechada e selada. Em cima da mesa oval, longa e brilhante de verniz velho, jazia a caixa. Jazia o dono da caixa algures nos Prazeres, enterrado no sábado pela irmã, alguma chuva e o padre. Isto porque o coveiro teve que atender uma chamada e só voltou já quase meia hora depois para ajudar o pessoal da funerária na descida do caixão, já sem a companhia do assistente do divino.

Como se do caixão saísse, a voz trémula, profunda, gasta por quilómetros de tabaco, era agora repetida pelo procurador, também ele já longe da flor da juventude, um advogado que acompanhou o senhor Samuel desde o início dos tempos. E mesmo estando escrito, como todos depois leram, mesmo dito pelo procurador, como todos ouviram, era difícil de encaixar o veredicto do senhor Samuel.

Neste início ninguém se opôs ao trato imposto pelas quatro folhas manuscritas autenticadas no cartório de Loulé. Uns porque não queriam abdicar da pequena fortuna que isso implicava, outros porque achavam nisso uma brincadeira de tão mau gosto que até se riam.

A caixa tinha que cumprir um ritual algo absurdo, um pouco patético até. Teria que estar quinze dias com cada um dos legatários, em lugar visível e disponível a qualquer hora do dia ao procurador para aferir que esta nunca era aberta por ninguém. A sequência de rotação começava nos irmãos, do mais velho para o mais novo, passava para os sobrinhos e regressava. Um ciclo algo conturbado do ponto de vista geográfico, mas recompensador - por cada ano que se conseguisse dividir esta tarefa, os herdeiros recebiam um quinto da herança. Qualquer cabecinha percebia que bastavam cinco anos para receber tudo. E o tudo não era pouco. O senhor Samuel tinha um vício raro – enriquecer. Enriquecer era o motivo para continuar até que a saúde o permitisse.

A caixa era em pau-preto. Tinha dois selos, parecidos aos dos contadores de electricidade mas com muito mais pompa. Um era vermelho o outro roxo. Um cubo com vinte e dois centímetros de aresta. Relevos sobre caça com figuras gregas sem vestes na tampa que não apresentava dobradiças, porque estas eram interiores. No limite da tampa, junto à aresta que recebia os selos uma gravação minúscula: a César o que é de César.

A primeira semana foi mesmo muito conturbada. Os irmãos viviam numa área equivalente a um círculo com um diâmetro de 300 quilómetros. Quando tocava aos sobrinhos o diâmetro dobrava. Muitos telefonemas, muitas discussões antigas a virem ao de cima, algumas mágoas minúsculas mas tal como o fermento, pouca coisa que faz crescer muita. Quem leva o quê a quem, quando leva o quê de onde para onde e o que deve ser feito quando não dá para fazer o que devia ser feito. Mas lá se encaixou tudo, o móbil era óbvio para todos, mas ainda assim esses todos esforçavam-se por fazê-lo com um sorriso de vitória, como se a sua parte fosse o de menos importância. Não havia necessidade de ficar mal na figura e entretanto os mais ajuizados apressaram-se a celebrar cláusulas entre si de modo que aquele que violasse o testamento indemnizasse os cumpridores. O móbil crescia, mas era sempre o mesmo.

A irmã foi a primeira a receber a caixa. Ficou visível aos olhos de quem a quisesse ver, em cima da televisão da sala. Uma televisão quase tão morta como o seu irmão. E diga-se quase porque ao domingo fazia de rádio e passava a missa do quarto canal. Mas nesta quinzena foi diferente. A televisão foi limpa, ligada e tinha uma espectadora diária. Ou pelo menos assim parecia, porque o que realmente estava a ser contemplado era a caixa. Era magnética, no seu negrume, as figuras gregas, os selos – tudo puxava os olhos para ela. E no entanto quem em casa entrasse jamais iria prestar atenção àquele cubo ridículo em cima de uma televisão velha, ainda a preto e branco vejam só!

A primeira semana passou-se relativamente bem, sem grande agitação. Mas à medida que chegava o dia da passagem de testemunho crescia um sentimento estranho, incómodo dentro da Menina Gertrudes. Aquele sentimento de dependência que sempre o irmão lhe causara, de impotência perante os argumentos dele. Aquele servilismo voluntário que sempre acabava por marcar o ritmo entre eles. No fundo uma inveja profunda. E talvez por isso no dia da troca, face às dificuldades do irmão José de receber a caixa, Gertrudes não se fez rogada, bem pelo contrário. “A caixa fica, não tem problema, quando puderes, eu compreendo.”

A caixa lá seguiu para a casa do José. O José era daqueles cinquentas todos modernaços, namoradas para a esquerda, namorados para a direita. Levava a vida que queria, como queria, com quem queria. Mas no fundo nunca estava em paz – o normal. A caixa foi largada com todo o desprezo do mundo em cima do aparador da entrada. Com o mesmo desprezo com que sempre lidou com o irmão. O irmão não passava de um midas, arrogante e antiquado movido apenas pela sede de mais, completamente incompatível com os anseios e necessidades de José. José queria falar sobre bons vinhos, Samuel queria comprar vinho barato. José queria conhecer raparigas, Samuel queria encontrar uma dona de casa. José queria viajar para conhecer o mundo, Samuel queria viajar para fazer negócios pelo mundo.

Ao quinto dia José tropeçou com o olhar na caixa. Aproximou-se e leu a inscrição. “O meu irmão sempre foi um bocadinho estúpido, sem dúvida. Nem ele sabe quem foi César… Aqui está esta merda, a rodar de casa em casa… para quê? Até depois de morto tem que mostrar que manda… Foda-se! Não há paciência.”

E bem que lhe apeteceu quebrar os selos, tomá-los da ira que ainda guardava pelo seu irmão mesquinho, ordinário, vulgar e no entanto sempre moralista, sempre com a sua opiniãozinha sobre tudo o que se passava na sua vida. Mas lá se controlou e manteve a caixa intacta. E acabou, nos dias que restaram, a olhar para ela com um misto de curiosidade e raiva… sempre mantendo a distância que sempre mantivera do irmão.

A caixa seguiu para o sobrinho mais velho. O filho único de Gertrudes, ainda que toda a gente lhe chamasse de Menina Gertrudes, era um fulano pacato, pouco ambicioso, pouco tudo em geral. Menos no peso. Sérgio era redondo visto de cima e oval visto de frente… um porta-aviões humano, sempre pronto a engolir mais um hambúrguer, a beber mais um batido, a sorver mais uma cola e a dormir… dormir… dormir

Talvez por isso durante a primeira semana a caixa passou despercebida, algures no meio do que poderia ser tanto um quarto, como as traseiras de uma pizaria. No entanto num dia de pouco que fazer lá se fixou na caixa. Só lhe ocorriam aquelas caixas de bombons do Natal… Talvez por causa do colorido dos selos, talvez pelo preto da madeira africana – o que interessa é que só de ver a caixa cheirava-lhe a chocolate. E nada lhe tirava da ideia que era isso que lá dentro morava. Como um íman de chocolate que chamava com um assobio fino e lento. Afinal o tio nunca comera chocolates na vida, se calhar guardara naquela caixa algo que não era para ele, mas sim para quem gostasse. “Mas porque iria alguém guardar chocolates numa caixa e submeter as pessoas a este ritual estranho? E porque não?” Ainda que até ao próprio Sérgio todo este desfiar de especulações parecesse de todo ridículo, o certo é que elas foram ganhando espaço, cravando raízes, crescendo pelas paredes do pensamento até que o que a qualquer um parecia do mais descabido, afinal não seria assim tanto, afinal era bem possível e se calhar era o mais certo. Era a única explicação.

E os últimos dias foram passados a conjecturar sobre a possibilidade do conteúdo da caixa, alimentado um rol de possibilidades infinitas, alimentares, monetárias, místicas de tal modo que quando entregou a caixa à prima, teve que o ser quase à força.

“Ó Sérgio, assim ‘tá difícil! Dá-me lá isso que ainda tenho que ir à biblioteca! Vá despacha-te. O meu pai vai-se passar se lhe contar esta cena.”

Inês era filha de José e de uma das suas diversas mulheres. Josefina acabou por traí-lo com o seu próprio namorado, um amigo colorido lá do serviço. No dia em que José apanhou Josefina com o Miguel na cama livrou-se de três responsabilidades: mulher infiel, namorado clandestino e filha vampira. Um golpe de sorte, sem dúvida.

Inês era uma mocinha espampanante, plástica, toda ela aipode, toda ela aifaive, sem tempo para conversar, com pressa de chegar não se sabe bem onde e movida pela vaidade pequena de se ver bem vista. Mas não era rapariga para perder tempo em ilações sobre caixas e sei lá mais o quê. “É preciso guardar este trambolho quinze dias, né? A malta depois recebe uns cobres, né? Então passa p’ra cá isso rapidinho que ainda tenho que pôr umas cábulas no telemóvel pró exame de Sociologia, senão ainda não é este ano que termino a Faculdade.” E seguiu. Caixa no automóvel, banco de trás atulhado de sacos de zaras e mangos e sei lá mais quê, e a caixa. Sempre silenciosa, sempre pesada, sempre magnética.

Já à noite, em conversa com as amigas, referiu-se à caixa como um talismã oriental que lhe tinha comprado o Rodrigo – um super namorado, com um super carrão e uma super vida. A mentira até se percebe, não ficaria nada bem manter uma caixa com ela por 15 dias por uns trocos…

A conversa evoluiu da mentira pequena e inocente para todo um esquema em que Rodrigo foi obrigado a acompanhar como um cúmplice, toda uma história infindável cada vez mais rica em pormenores. A caixa comprada na Índia, um talismã benzido por um xamã qualquer, o valor exorbitante da caixa. E no final sempre exibida.

No dia de fechar o círculo a caixa foi devolvida com relutância – afinal, o talismã exercia sobre ela até uma boa vibração, e era chato aparecer sem a ajuda divina dentro do carro.

E a partir daqui o ciclo foi-se mantendo. De cada vez que trocava de tutor o sentimento de apego aumentava, fechando o circulo, apertando as vontades, aumentando a necessidade de ter a caixa, de odiar a caixa, de venerar a caixa.

E ainda assim a caixa manteve-se fechada, tal como o testamento assim o exigia. E quinzena a quinzena o chamamento inicial passou do quinto da herança cobiçada para algo novo e movediço.

Gertrudes necessitava da caixa, dominar os seus medos. José queria partir a caixa, libertar-se da raiva. Sérgio ambicionava o conteúdo, doce ou amargo, ilusório ou real, a guloseima ideal. Inês precisava da caixa, exibi-la, rechear o seu status com ela.

À quarta ronda juntaram-se os quatro por um acaso não ocasional. De um modo ou de outro acabou por se juntar a necessidade e o engenho e lá se reuniram com o procurador. Rápido se percebeu que estavam todos de acordo no desacordo, que é o que acontece quando se quer dividir em partes inteiras o que é uno.

“Meus senhores, o testamento é claro. Não podem abrir a caixa e não podem apartar-se ou apropriar-se dela, é sempre uma responsabilidade, nunca uma propriedade. Não há nada nas entrelinhas e ainda assim não sei se estão a cumprir o testamento, porque manifestamente vejo-vos aqui aos quatro!”

Como assim? A pergunta rachou o ar e instalou uma electricidade na sala. Após estes meses de rotações e de ambição, o que falhou? Alguma regra não enunciada? O que queria este palhaço moribundo dizer com isto?

Ao que parece uma das regras era que não podia haver reunião de herdeiros nomeados para discussão alguma relacionada com a caixa ou o seu eventual conteúdo.

Os ânimos alteraram-se. As vozes cresceram, treparam as paredes e fugiram com o som pelas arestas da sala, vincadas e inflexíveis. E no meio da troca de argumentos, a caixa chamou pelos seus tutores e estes jogaram-se a ela.

A alma da coisa passou de verbal a física. E no meio do contacto entre corpos a caixa caiu e quebrou os selos. A tampa separou-se e o interior da caixa expôs-se aos olhos alterados dos quatro animais que entre si trocavam empurrões e puxões.

A caixa estava vazia.

Ou pelo menos assim parecia. O procurador ajeitou os óculos, acertou o cabelo, compôs o fato.

“Eu sabia que era isto que ia acontecer, eu sabia! e o Samuel também, só que tinha a tola esperança que não… bom. Mas a caixa não está vazia. Gertrudes apanhe a tampa por favor…”

Gertrudes vergou-se e apanhou a tampa com alguma vergonha. Nas costas da tampa uma fotografia estava colada com fita adesiva. Uma fotografia velha e amarelada, cantos coçados e película estalada. Três crianças, mal vestidas, todas em escadinha junto a um cão quase do tamanho deles. Uma menina e dois meninos. Três sorrisos luminosos, tão luminosos que nem a idade da fotografia, a pobreza do suporte e os farrapos dos modelos conseguiam encobrir a luz deles. O cão rematava com um ar pacato, quase Velásqueziano, não fosse estar acordado.

As mãos nodosas, secas, muito nervosas viraram a foto… “ Eu e os meus irmãos muito felizes juntos” A letra infantil denunciava o escriba. Samuel sempre tinha tido uma letra muito pouco apresentável, mesmo depois de todos os estudos que fez. E denunciava um amor que a sua avareza sempre tinha escondido, porque havia algo no meio que sempre os dividira, até depois da morte. Mas a César o que é de César.

A fortuna foi então entregue, segundo cláusula testamental, a um indivíduo que geria uma empresa associada a uma organização não governamental de micro crédito especializado em empresas de cariz familiar e de apoio à família.

sexta-feira, 13 de março de 2009

O traficantezinho

- Paulo?! Estás ai?! Balbuciou descendo e subindo a mão aberta, embora com os dedos unidos, em frente à minha cara. Estava noutro mundo, viajava de olhos abertos. Este caso, apesar de aparentemente simples, abalou com as minhas convicções sobre a culpa. Agora consigo ver o quão volátil pode ser a culpa e a moral, será que a lei deve mesmo ser completamente amoral? Como conseguiria eu julgar o que quer que fosse depois disto?!
- Foda-se, está a dar Broken Social Scene, pede aí mais uma preta, disse-lhe.
– É por isso que curto este bar pá…
- Acredita, e está sempre carregado de gajas, respondeu-me com um inocente ar baboso e de olhos brilhantes agarrados ao rabo de uma tipa que falava com o namorado sobre uma exposição qualquer que não interessava ao diabo. Agarrei na cerveja atirando-a nervosamente à goela e fechei os olhos por segundos.
– Pedro, já viste o caso fodido que apanhei? Não consigo pensar noutra coisa.
- Qual? O do traficantezinho?
- Iá, que cena a história de vida do gajo…
A noite passou-se rapidamente até porque não estava com cabeça para a confusão etílica do Bairro Alto e em pouco tempo estava no sofá individual da sala sentado de braços cruzados, a fumar um cigarro e a pensar novamente no caso. O tipo devia ter cerca de quarenta e cinco anos, tinha um aspecto estranho, abacorado, um bigode curto e triste e tinha umas feições genericamente amarguradas. De acordo com um relatório médico que se encontrava apensado ao processo, tinha o corpo tomado por dezenas, talvez centenas, de pequenos tumores afiados que lhe corrompiam o corpo e a alma. Provavelmente não viveria muito mais. As linhas largas das suas olheiras entoavam baladas trágicas de uma melancolia arrepiante, parecia já ter caído no abismo por várias vezes. Quando abriu a redonda boca para falar pela primeira vez em juízo, de pé, atrofiado pelo medo e pela responsabilidade, tiniu tetricamente algumas palavras que tive dificuldade em ouvir no imediato,
- Senhor juiz, eu vendia o produto sim senhor, mas aquilo dava apenas para poder comprar para mim próprio, acalmava-me as dores. A minha vida é uma miséria, ainda por cima agora com a minha filha a estudar…
- E que tipo de drogas vendia?
- Ó senhor juiz, vendia apenas haxixe e erva aos miúdos.
- Ai sim?! Mas diga-me lá então, a que miúdos vendia? Perguntei-lhe animosamente.
- Os que me apareciam lá eu vendia-lhes, eles diziam que eu vendia barato e que era um cota fixe. Quer dizer, vendia a toda a gente, não dizia que não a ninguém que lá fosse comprar e havia gente de todas as idades e classes, não faz ideia, respondeu mastigando em seco.
Mas eu fazia ideia. Respondia-me com verdade a tudo o que lhe perguntava, conforme corroboravam os seus olhos largos e cansados. Quase como se não houvesse culpa, quase como se não estivesse a fazer nada de mal. Apesar de saber que se tratava de uma actividade ilícita, de certa forma, não possuía uma verdadeira consciência da ilicitude dos actos que perpetrava havia anos.
O dia finou-se rapidamente. Estava de novo sozinho em casa e o raio do homem não me saía da cabeça. Ainda pensei em telefonar à Maria, o esquema que na altura me entretinha os tomates, mas nem para me masturbar tinha vontade. Estendi-me em cima da carpete da sala, castanha e de uma rugosidade excessiva, amontoada de pó, a Svetlana já não aparecia há umas semanas não sei porquê, e fumei um marlboro, enquanto partia e trincava línguas de gato que a minha mãe tinha comprado, agora caídas e espalhadas ao meu lado, e pensava no pecado que cunhava o traficante, com os olhos vazios a boiarem pelo tecto, tentando interpretar o puzzle criado por uma aranha enorme e anoréctica que cavalgava pelo branco enferrujado de uma mancha oblonga. Havia discos espalhados pela zona perto da aparelhagem, conseguia ver a banana warholiana do álbum dos Velvet Underground e mais dois ou três discos de blues de uns americanos quaisquer, mineiros acho, que tinha andado a ouvir nos últimos dias. O gira-discos que tinha comprado na feira da ladra uns meses antes continuava a trabalhar, contra todas as expectativas, e ia tocando um antigo disco de jazz, furtado ao meu tio de Alvalade, Coltrane, que me ajudava a meditar e acalmava-me. Este caso lembrou-me os bons tempos de festivais de verão, Sudoeste e Paredes de Coura, agora extintos pelo respeito à ancestral deontologia da moral jurídica, onde todos fumavam tudo o que houvesse, de erva a eucalipto, passando por coca até mesmo tendas, bebiam até os olhos cerrarem de bebedeira e as pernas tremelicarem com o peso da cevada que carregavam na pança, lanchavam bolos ou iogurtes de ganza comprados a chungas moribundos que por lá andavam, em trabalho, espojados pela terraria ou mesmo preparados em família nas tendinhas dispostas erraticamente por entre eucaliptos e calhaus, entre dezenas de outros produtos alucinogénicos que estimulavam a festa e tornavam os concertos de merda em espectáculos de uma vida. Eu próprio fumei droga que se calhar foi vendida por este tipo. As boas lembranças de verões de loucura e morte cerebral, encadilhadas com todas as interrogações que este caso me provocava, foram-me embalando até acordar por volta das 5h30 deitado ainda na carpete ruça já, que tinha vindo da casa dos meus pais, e me aquecia por entre os nacos de pó e ninhos de ácaros que por lá habitavam. Fui dormir.
Acordei sobressaltado,
- Foda-se, já são 8h30, levantei-me e vesti-me rapidamente e saí a correr sem sequer beber café, nem comer a habitual sandes de fiambre do talho da Helena perneta, salgadinha com manteiga mimosa, com que me deliciava todas as manhãs. Já estava atrasado para a audiência final do julgamento do traficantezinho e, ainda por cima, apanhei um trânsito fodidamente entravado, o que mexeu ainda mais com o meu humor matinal de trabalhador do serviço de finanças.
A sala estava apinhada de gentalha com os nervos a crepitar à flor da pele, tudo sentado à espera do meritíssimo, eu, ainda ontem uma criança a enfrascar-me que nem um alarve na Universidade, venerado na maioria das tascas e bares lisboetas e coimbrãs, hoje um respeitado e promissor jovem juiz, judge dread para os amigos mais próximos, que fazia a acostumada justiça pelos juízos criminais de Lisboa. Entrei na sala e todos se levantaram, de um salto sonoro, das cadeiras por reverência à minha negrinha imagem, vestida de beca, que eu próprio satirizo com um,
- Podem-se sentar, por favor.
- A audiência final, relativa ao Processo n.º 313/2008, vai prosseguir, entoei reverencialmente.
A multidão que invadiu o tribunal, deixando a sala a transbordar de povinho, que não sabia sequer o que ali fazia - será que o caso passou na TVI e eu não me apercebi, pensei -, ainda vociferou uns “assassino” e “queres matar-nos as crianças, bandido”,
- Ordem no Tribunal, resmungou alto a madeira do martelo que bateu várias vezes até que a desordem acalmasse e se calasse. A sala ficou à pinha, como poucas vezes tinha visto em dois anos de juízos criminais, tornando-se num espectáculo hollywoodesco, o que me aumentou a nervoseira que já dificilmente conseguia disfarçar e que fui tentando dramaturgicamente dissimular.
E assim foi, o julgamento continuou, devorando tempo, por entre as vazias alegações num português de cachupa do Procurador do Ministério Público, um tipo preto e vão, e as dissertações sobre a moral de um advogado de acusação atarracado e de sorriso sarcástico, que vestia um minúsculo fato italiano da colecção passada e uivava com as suas mãozinhas de pardal em riste como se a razão e a moral em si residissem, movimentos que os meus olhos foram aquilatando lentamente. Na hora de decidir, apesar de não possuir quaisquer dúvidas sobre a subsunção dos actos do traficantezeco ao crime de tráfico de estupefacientes, que o meu código riscado e amarelejado, por entre as milhentas glosas que as noites e noites perdidas de estudo, me confirmava, numa antinomia quase visceral, perdia todas as certezas, porque moralmente, e mesmo em termos abstractos considerando o caso concreto do homem, a minha razão, bem lá no fundo, dizia-me outra coisa. Fiquei confusamente afectado e sem saber muito bem o que fazer.
- Diga-me, como se apresenta perante este Tribunal?
- Culpado, senhor juiz, respondeu-me envergonhado.
- Tem alguma coisa a acrescentar em sua defesa?
- Senhor juiz, eu queria novamente pedir desculpa e dizer que estou arrependido, mas nem sequer ganhava dinheiro com isto, ganhava apenas o suficiente para pagar as contas e para comprar para consumir, era a única coisa que ainda me ia acalmando as dores e os tumores que me comem a carne, aos poucos, todos os dias, e olhe que tomei dezenas e dezenas de medicamentos e tratamentos que os médicos me foram prescrevendo, embora nenhum deles me aliviasse o sofrimento, ainda pensei em atirar-me da 25 de Abril...
- Eu sei que isto não é vida senhor juiz, mas também não ando por aí a matar ninguém ou a roubar e o senhor juiz até me deve perceber, na sua juventude também deve ter fumado uns charutinhos e, no entanto, está aqui, e bem, enquanto digno representante da justiça e do país.
- Ordem no tribunal, o martelo voltou a cascar na mesa raivosamente,
- Mas o senhor está a insinuar que eu também consumo droga, para se tentar justificar?! No interior, a confusão tomava-me – sim, fumei e não foi pouco e, de vez em quando, quando em festa, ainda atiro umas golfadas de fumo folgazão para a garganta e travo em troca da calmaria que me consome de seguida. Até espampanantes e coloridas aves pré-históricas, há muito extintas, eu vi, e irmãos há muito perdidos encontrei, e codornizes gigantes e fugidias, que comigo gozavam, persegui por bairros anónimos…
- Ainda que isso fosse verdade, que não é, não lhe parece essa uma má desculpa para prosseguir uma actividade que é proibida e punida legalmente como bem sabe? Perguntei-lhe altivamente impelido pelos esticados braços que se encavalitavam na mesa que nos separava, embora, por dentro, estivesse pouco ou nada convicto daquilo que asseverava.
O homem semicerrou os olhos e fitou o chão obliquamente como que assentindo aquilo que a moralista justiça lhe tinha acabado de questionar. O meu hemisfério direito, e o esquerdo também, não parava de demandar sobre até onde deverá ir a mão estadual penalizadora na protecção da nossa vida e saúde? Onde reside então a liberdade individual de cada um? Foda-se, mas será que isto faz algum sentido?
A sessão acabou e o homem foi levado em braços até à sua cela por dois polícias com um ar aparvalhado, um gordo, baixo e rosado e um alto, de cara suja e voz intermitente, ambos de grave sorriso na cara pela justiça e lei cumpridas e pelo honorífico serviço que estavam a prestar à sociedade, por entre o cagaçal que a multidão que me havia invadido o Tribunal ia fazendo, que o despejaram na solidão da treva de um pequeno cubículo escuro e sebento, apartador dos males da vida.
A sentença foi lida uns tempos depois, oito anos de prisão que afastaram o pobre coitado da luz do dia, ameaça da sociedade, das ruas e das famílias, pelo crime de tráfico de drogas leves. Eu, pouco tempo depois, em Setembro, causticado com o maniqueísmo que conheci na lei, e depois de perder a Certeza, concorri para os tribunais administrativos.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Eu daqui vejo tudo.

Eu daqui vejo tudo. Os que entram, os que saem, os que se esquecem do carrinho, os que têm que ir ao multibanco. Eu vejo as famílias, os solteiros, os separados - cada um com o seu cesto a comprar coisas repetidas. Vejo os putos que vão comprar cerveja, os ucras que vão comprar muita cerveja, as trintonas que vão comprar cremes e as quarentonas que vão comprar muitos cremes. Sou omnisciente. Sou omnipresente. Sou o fim de um processo que começa fora daqui, em casa, num anúncio, numa lista pendurada no frigorifico, num telefonema à ultima da hora ou num pensamento prolongado com o olhar fixo numa esquina da despensa.

Eu conheço quase tudo. O código do garrafão de 5 litros é diferente quando vem num pack, a fruta que tem que ser pesada, mangas, pêra abacate, pêra rocha, maçã starking, maçã raineta, maçã pink rose, pêro, uva globe, uva branca, uva cardinal, tremoço nacional, banana da madeira, banana que não vem da madeira, todo o tipo de citrinos, ananás e abacaxi, abacate, já disse manga? As promoções, os vales de desconto, os códigos errados, e claro, um ou outro produto que não tem código porque a malta do escritório não sei quê mas vai ficar amanhã.

Eu lembro-me de tudo. E é por isso que isto me custa tanto. E é por isso que não preciso de televisão. E é por isso que tenho que desabafar com alguém… porque se não o fizer não sei se alguma vez poderei ter o privilégio de esquecer. Eu lembro-me do preço do sabonete Vitalux há dois anos, 58 cêntimos. E os preservativos Qualitat estavam a 7,32 a caixa mas agora apesar de mais caros fazem uma promoção gira que oferece um colorido. Eu não precisava de decorar estas merdas… bastava passar o código e ouvir o bip. Mas a puta da curiosidade sempre me levou a melhor. Então eu decoro tudo… sou um preçário vivo. Mas ainda assim um preçário obsoleto e disfuncional, porque eu não posso introduzir um único preço! Tem que fazer bip. Bip. Bip. Mas se fosse só isto eu não me preocuparia. Afinal, mais preço menos preço, não seria uma fiada de números que me tirariam a tesão. Eu lembro-me dos que entraram, quando entraram, a cara que levavam, a roupa que carregavam, os que saiam, as compras que pagaram. E sei mais… sei pormenores da vida deles. Muitos pormenores.

A Srª Maria Dolores Graça Nascimento Pinto, faz compras sempre à sexta à noite. Compra sempre um avio que é obviamente semanal e leva uma eternidade a encontrar o cartão de débito. Leva sempre uma ou duas garrafas de vinho tinto, geralmente da promoção mais em conta, como a da semana passada, Mosteiro Velho, por 3,20 a garrafa. Nunca vi aquela mulher de calças. Ainda bem.

O Fernando taxista vem todos os dias pelo meio-dia comprar pão. Aquilo nem é pão, é um sucedâneo de pão. Ele sabe-o e até já o admitiu à minha frente. Tem sempre uma confusão imensa de coisas no bolso, incluindo pequenos pedaços de unha que saem junto com moedas, notas e cartões de prostitutas que ele ajuda na angariação. Desenganem-se se pensam que o pão é para ele. Já percebi que é para a mãe, houve um dia que ouvi a conversa no telemóvel. E lá está a cabra da curiosidade a registar tudo.

A Aida que mora no Bairro do Novo Baião não tem um padrão de compras. Nunca percebi ao certo, mas aposto que faz o resto das compras noutro sítio. O que sei é que foi casada, mas como já há um ano que não usa aliança… quem quiser que faça contas! Leva sempre aqueles iogurtes que fazem maravilhas a tudo: barriga, dentes, cabelo. Compra sempre daquelas marcas que são mais caras por motivo nenhum e sem razão aparente acabam por ter uma embalagem mais apelativa, como se subornassem as outras marcas para terem embalagens antiquadas. A rapariga vem sempre à pressa, esbaforida, sem vagar, tensa. Usa muita roupa vermelha, que lhe fica muito mal mas que insiste em mostrar as saliências e protuberâncias do seu corpo roliço e audaz. Nunca vi um par de tetas tão espetadas. Mas nem por isso elas se espantam com o meu olhar guloso, ainda nem bem tem o troco na mão já as mamas apontam para a porta de saída.

Não posso omitir a família do Zé Caixa. É uma comédia viva e por episódios. Primeiro vem a matriarca, muito pachorrenta, muito serena, muito feia, um buço de meter respeito ao mais digno chefe de família. Meia hora depois chega o senhor Caixa, sempre com o rego do cú a subir para fora das calças. Acho que faz parte do status de mecânico, é daquelas coisas, mecânico que é mecânico: calças cagadas e rego do cú a aparecer. Mas não compra nada, nem um palito. Vai só dar instruções à miss universo e regressa para o café, que também vejo daqui, e bebe mais um copo. Não interessa do quê, do que houver, beirão, amarguinha, cati çarque, ó homem ponha isso aí que eu só tenho 50 centimes. Depois, por último e triunfal chega a sogra do Zé. Ao que parece é a única com carta de condução, logo a única pessoa habilitada a levar a mercadoria a casa. Curiosamente, ou não, a única que veste roupa digna desse nome.

Estas pessoas são as estrelas principais. Os actores que entram em todos os episódios. Mas eu não esqueço os convidados especiais, os actores secundários, os figurantes, os duplos.

Um casal de hippies que em pleno Fevereiro apareceu a pedir à Susete do balcão de informações um guarda-sol, mas tinha que ser amarelo. Tinha que ser amarelo porque eles tinham mais ácido no sangue que uma bateria.

Um espanhol que queria pela graça e força de todos os santos populares pagar a conta em pesetas em pleno 2006.

As putas do Bar Cachalote que vêm à vez comprar uma dúzia de batons e três dúzias de preservativos. E um ou outro pacote de leite e muito esparguete, algum atum e sempre, mas sempre, água com gás… deve ser para o patrão.

O senhor agente Santiago que entrou duas vezes na tabacaria para comprar mortalhas de arroz e um isqueiro. Mas toda a gente sabe que ele não fuma, porque nem comprou tabaco. Ou se calhar fuma mas não fuma o que deveria fumar um agente da autoridade e até se calhar por isso é q só entrou duas vezes por lá.

Os casais de namorados, 14, 15, 16 anos a comprar preservativos, muito convictos do que são e do que querem, mas que nem por isso conseguem disfarçar o riso nervoso. Alguns foram pais este ano. Nunca fiar no látex ou na pressa.

E lembro-me da cara de todos os turistas incautos que pagaram o triplo por pilhas AAA do que pagariam na tabacaria, quando deveria ser ao contrário.

E não me esqueço dos episódios míticos, dignos de registo nos anais do retalho grossista e não só.

A vez que uma lata de tinta explodiu a meio do Verão. Foi de tal ordem que ainda existem luminárias com tinta verde manso referência C4003.

A vez que o nosso digno e douto gerente se peidou em quase estereofonia, que eu bem ouvi. Valeu-lhe ser nove e meia e o único cliente ser o Senhor Cabral que insiste em comprar peixe diariamente à mesma hora.

A vez que a casa de banho entupiu e havia não só o cheiro mas também um ribeiro de coisas que já foram nossas no átrio de entrada.
Mas isso seria mal menor.

Eu não esqueço os trocos que dei, eu não esqueço os talões de desconto que entreguei, eu não esqueço o valor de fecho desde 2004 e não esqueço o nome de uma única pessoa que me pague em cartão.

Não me consigo lembrar porque isto começou, nem quando me dei conta.

E sinto falta dos que não esqueço. Do António carpinteiro que morreu faz dois meses que comprava ginginha, do sô Castro, um viúvo subterrâneo que foi viver para o Algarve, da Antonieta que levou uma pazada de uma camião e agora nem tão cedo volta cá, que comprava sempre quilos de bolacha Maria. Curiosamente nunca mais houve bolo bolacha na cafetaria.

E sinto falta dos artigos que já não vendemos. Do lava-tudo com cheiro a maçã, que derramou na zona dos frescos e empestou as condutas do ar condicionado por meses, dos cotonetes bicudos que toda a gente reclamou, das vassouras tradicionais que não tinham código.

E sinto falta dos colegas. Do Chico que depois de ser pai dedicou-se a vender haxe, da Susana que casou com um militar e foi para o Porto, do Miguel que começou a beber para esquecer e esqueceu-se de parar.

Eu não consigo esquecer e tenho medo que venha a piorar. Tenho medo de me vir a lembrar do futuro. E aí eu vou saber que algo aqui dentro da caixa já não soma, nem divide, só multiplica.

Ser caixa ainda assim é uma profissão a ter em linha de conta. Ganho 480 euros por mês, um dia de folga por semana, dois uniformes e tenho um circo diário só para mim. Para quê televisão?

quarta-feira, 4 de março de 2009

A decisão

A decisão tinha sido tomada. O sentido havia partido há muito, triste pelo luto eterno que bradava em nome da razão desaparecida desde cedo, por entre uma juventude arisca, fodida, de trabalhos forçados desde os oito anos, botas de retraço, mais duras que a terra nua e a vida, penduradas aos ombros, para ganhar dois tostões e um saco de batatas ao fim do ano, entregues em mão ao senhor-pai.
Agora arrastava-se pela vilazinha esverdeada e lustrosa, perdida lá no alto entre encostas cavadas no inferno, caiada de pequenez, mosto de olhos pequeninos atentos e sedentos de notícias do próximo, de preferência más,
- Então não é que o filho do marceneiro casou com uma mulher da vida, sim uma putéfia qualquer que mandou vir por aquela coisa da internet, directamente do Brasil, ouvi de uma boca velha de corvo, encavalitada na encarquilhada janela da sala, na ânsia de poder contar a notícia à paciente vizinha de que nem gosta muito e que a ouve com medo da sua afiada voz linguaruda, é que todos temos, mais ou menos, esqueletos lá bem no fundo do baú, não é?!
Era uma sombra andante, de corpo opado, passado do prazo, que se ia escondendo em pequenas tascas que o acolhiam guardando fielmente o seu segredo, em troca do esvaziar de mosquitos de aguardente e imperiais sem fim, conhaques amarelecidos pela prateleira onde se encontravam estacionados sem sequer pagar parquímetro, e algum vinho negro alentejano e amargo, provavelmente já podre. A espuma encardida das imperiais lembrava-lhe a vida construída e desconstruída de talvez cinquenta anos, os filhos e netos que criou, a mulher atarracada e chata, impingida pela família, dois ou três amigos, e os movimentos mecânicos que lhe emprestavam o copo à boca duplicavam-se, triplicavam-se. Os seus olhos agora vazios, outrora castanho-negros de um brilhante intenso e vivo, fitavam obliquamente o passado que o havia aterrorizado. Era a sua última noite.
Na mesa ao lado, cagada de cascas de tremoços lascadas pelos falsos dentes das caquécticas placas de dois tipos de meia idade, comentava-se a morte do Mestre Manel,
- Então o Mestre Manel não se matou…meteu dois frascos de 605 forte no bucho a noite passada. O homem tinha tudo, porque raio se havia de matar?! Contou ao outro, que pasmado e de bifana, agarrada pela mão disforme, que lhe enchia a boca e derramava molho por todos lados, nem sequer falou, respondendo apenas com um esbugalhar de olhos, eriçando as farfalhudas e díspares sobrancelhas que lhe escondiam a enorme e gordurosa testa. Viu-se o espanto na sua cara, pálida e prenhe de resolução, não era só ele que tinha tomado a decisão. A sua expressão, pela primeira vez, transparecia agora a dúvida, por entre pequenas gotículas de suor que lhe escorriam pelas salientes e avermelhadas maçãs do rosto,
- Mas será que fui assim tão infeliz? Comentou por entre dentes em sede de monólogo, por entre um cigarro meio partido que alguém tinha abandonado por ali e que o fumou em dois ou três tragos.
Deu por ele estendido na cama a olhar para o tecto coberto de teias e aranhiços excitados que chiavam e saltavam, como que num festim festejando a decisão tomada. Ao seu lado, a sua mulher que ressonava aconchegada pela ignorância, aquecida por uma combinação de renda de mau gosto de tom nácar e amarelo, deixava-o de certa forma triste, é que apesar de tudo, a vida fê-lo amá-la. Encontrava-se estranhamente calmo, que nem as asas compridas de um condor errando pelos céus, e o seu pensamento vagueava pelo espaço sideral de lembranças, embora não pensando em nada em concreto. Adormeceu tranquilamente que nem um bebé recém-nascido aconchegado e saciado pelo leite materno quente e mamas e amor da mãe direito ao grande dia que se encontrava cada vez mais perto.
Era manhã, cantavam os irritantes galos que gritavam há mais de duas horas, desde que o sol se levantou e alumiou a vila e o campo e escondeu o escuro e a treva por umas horas. A sensação era única, o dia final ditado pela decisão havia chegado. O silêncio que o rodeava desde há uns dias tornou-se ainda mais quieto, insuportável e aconchegante, quase como se soubesse do aproximar da sua quase não existência. Encontrava-se calmo apesar do leve tremelicar dos compridos e calejados dedos da mão direita que escondia no bolso rasgado das calças untadas de óleo e sujo e outras nódoas já imperceptíveis pelas infinitas lavagens.
Saiu normalmente de casa e dirigiu-se ao café de sempre, ou pelo menos dos últimos anos, onde sempre bebia um café meio queimado e um medronho, depois de uma sandes de presunto da terra, com apenas uma fatia de presunto e manteiga, como assim dizia a empregada,
- O mesmo de sempre senhor Pedro? Na sua matinal voz sedutora de taberna, que, por entre os sorrisinhos e gritinhos que lhe lançava, constituía quase sempre o ponto alto do seu dia igual a todos e aos próximos. Sentia uma calmaria que lhe saltava do peito apertado pela camisa de um xadrez encolhido, que nem as grades da choça, que a mulher lhe tinha comprado como prenda de aniversário a um cigano encardido que voltava sempre para todos os mercados.
O dia passou-se depressa, por entre a visita a um e outro cliente que interesseiramente lhe pedia mansões mal amanhadas pelo gosto bimbo de serrano para amanhã, a custo de mercado,
- Ó vizinho faça-me lá um preço de amigo que isto anda mal. Não se chateou, respondendo que sim a tudo o que lhe foram perguntando, movido por uma paz de esquecimento, brilhante, que o acompanhou durante o vagaroso andar dos ponteiros do tempo. O ténue sol que se fez anunciar logo pela manhã, foi raptado a meio da tarde por um frio polar e nuvens escuras, de um profundo negro africano, como que anunciando um juízo final específico já decidido, embora ainda anónimo para todos os outros.
Jantou embrenhado no prato cheio de um arroz de feijão mal-amanhado, que ainda assim lhe soube a caviar e vinho francês caro que nunca chegou a beber, porque a vida de pobre é assim mesmo. Bebeu uma garrafa de vinho tinto carrascão, gramujeira, daquele que até a comida cospe quando temperada, e tudo lhe pareceu ainda mais claro. Saiu de casa sem se despedir rumo à primeira tasca que encontrou e, levantando o forte indicador direito que a vida lhe deu,
- Chefe, dê-me uma aguardente das grandes se faz favor, e viu, acompanhado por um bêbado qualquer, desgraçado pela bebida, posto de parte pela família pelo seu “problema”, o glorioso pela última vez, que jogava para a taça com uma equipazalha da terceira divisão e ia ganhando (mal), cumprindo o dever que o peso do emblema lhe impunha. Bebeu outra e outra e outra aguardente em copos baços e mal lavados, até os sentidos e visão lateral encurtarem ao ponto de ter novamente a certeza da decisão que havia tomado.
Não era tarde, despediu-se do seu novo amigo, que mal conseguia falar e mesmo aguentar-se em pé, por um dia de trabalho intenso em várias tascas e cafés e bares para onde a vida o tinha destacado, apoiada pela recente mobilidade laboral, e desapareceu pela calçada do passeio da rua principal, de cabeça inclinada para baixo, revisitando o tempo vivido que o levou até ali. Movia-se a passos pequenos e marcados e ziguezagueando foi andando até chegar ao final da estrada civilizada, metendo-se sem pensar por uma azinhaga de terra batida. Chovia agora, miudamente, e continuava convictamente arrastando as pesadas botas enlameadas, por entre barulhos da noite de insectos cancerosos e mochos gordos de olhos brilhantes e julgadores e estevas afiladas e árvores velhas, cheias de vida, que o tocavam com os esguios ramos perdidos no negro da treva da noite tentando segurá-lo e afastá-lo do seu desiderato, da decisão. Mas, nada o podia parar, a decisão estava tomada há muito tempo e continuou sem parar, marchando sob o duro rufar de tambores de uma ópera macabra qualquer de Mozart, rebolando por vezes rasteirado pela bebedeira que carregava e que pesava juntamente com a roupa encharcada e suja colada ao corpo, refrescante, até chegar à porta da casa que o viu nascer, agora triste e despida, abandonada. Esvaiu-se em lágrimas e caiu de joelhos quase tocando com a cabeça na lama grossa e crescente, que lhe dava as boas vindas.
Num instante reviu toda a vida, desde o momento inicial de que se lembrava e que brincava exactamente no mesmo sítio onde se encontrava agora ajoelhado, procurando um perdão divino que o ilibasse de todos os pecados humanos que cometeu, até ao abandonar do berço que o pariu, o nascer de filhos pensados e não pensados e depois os netos, o sucesso alcançado medido pelo dinheiro que deixava numa conta escondida na Caixa Agrícola e alguns bens feitos com as suas próprias mãos, discussões e bebedeiras, felicidade e amargura, vida e morte. A epifania de uma vida pequenina, vazia e insossa que via agora reflectida na água, fonte da vida, que empunhava nas mãos arrumadas em forma de cocharro e que reluzia intensamente como que anuindo na decisão tomada. Não fazia sentido. As lágrimas continuaram a jorrar copiosamente como a chuva morta que agora caía, embutidas por pequenos e estrondosos trovões que luziam lá no cimo da serra fechada e intransigente.
Entrou em casa, após arrombar a porta feita de um carvalho roto e carunchoso, abandonado, e ficou especado a olhar para o negrume ácido que cobria as quatro paredes que o conheciam, enfeitado por fungos e musgo que por ali se abrigou e criou pequenas criaturas que habitavam ordeiramente o chão que pisava estático. Procurou e encontrou facilmente um velho baraço, que em tempos tinha servido para puxar um jumento cinzento e teimoso e amigo, e lançou-o a um barrote roído por insectos xilófagos insaciáveis. Fez um forte nó, que tinha aprendido nos tempos em que foi obrigado a servir a pátria na tropa e onde formou o carácter que até hoje, até hoje, mostrava, e, puxando um antigo banco que ali havia sido esquecido, ergueu-se, perguntando-se até que ponto seria, verdadeiramente, chorado. No minuto seguinte, atirou-se aconchegado pelo perfeito nó torcido de escuteiro que conseguira fazer no áspero baraço e estrebuchou umas quatro ou cinco vezes até se esvaziar o mais recôndito e forte pedaço de vida que o levantava todos os dias há mais de cinquenta anos, deixando-o inerte, embalado num certo balançar que finalmente lhe trazia paz.
A tempestade que se fazia sentir acalmou imediatamente e o silêncio foi perdendo a velha casa que também se foi perdendo por entre a noite e vegetação densa de castanheiros e amieiros, cada vez mais longe até desaparecer, pequenina, talvez para sempre e aos poucos todos esqueceram e viveram, foram vivendo.