quarta-feira, 4 de março de 2009

A decisão

A decisão tinha sido tomada. O sentido havia partido há muito, triste pelo luto eterno que bradava em nome da razão desaparecida desde cedo, por entre uma juventude arisca, fodida, de trabalhos forçados desde os oito anos, botas de retraço, mais duras que a terra nua e a vida, penduradas aos ombros, para ganhar dois tostões e um saco de batatas ao fim do ano, entregues em mão ao senhor-pai.
Agora arrastava-se pela vilazinha esverdeada e lustrosa, perdida lá no alto entre encostas cavadas no inferno, caiada de pequenez, mosto de olhos pequeninos atentos e sedentos de notícias do próximo, de preferência más,
- Então não é que o filho do marceneiro casou com uma mulher da vida, sim uma putéfia qualquer que mandou vir por aquela coisa da internet, directamente do Brasil, ouvi de uma boca velha de corvo, encavalitada na encarquilhada janela da sala, na ânsia de poder contar a notícia à paciente vizinha de que nem gosta muito e que a ouve com medo da sua afiada voz linguaruda, é que todos temos, mais ou menos, esqueletos lá bem no fundo do baú, não é?!
Era uma sombra andante, de corpo opado, passado do prazo, que se ia escondendo em pequenas tascas que o acolhiam guardando fielmente o seu segredo, em troca do esvaziar de mosquitos de aguardente e imperiais sem fim, conhaques amarelecidos pela prateleira onde se encontravam estacionados sem sequer pagar parquímetro, e algum vinho negro alentejano e amargo, provavelmente já podre. A espuma encardida das imperiais lembrava-lhe a vida construída e desconstruída de talvez cinquenta anos, os filhos e netos que criou, a mulher atarracada e chata, impingida pela família, dois ou três amigos, e os movimentos mecânicos que lhe emprestavam o copo à boca duplicavam-se, triplicavam-se. Os seus olhos agora vazios, outrora castanho-negros de um brilhante intenso e vivo, fitavam obliquamente o passado que o havia aterrorizado. Era a sua última noite.
Na mesa ao lado, cagada de cascas de tremoços lascadas pelos falsos dentes das caquécticas placas de dois tipos de meia idade, comentava-se a morte do Mestre Manel,
- Então o Mestre Manel não se matou…meteu dois frascos de 605 forte no bucho a noite passada. O homem tinha tudo, porque raio se havia de matar?! Contou ao outro, que pasmado e de bifana, agarrada pela mão disforme, que lhe enchia a boca e derramava molho por todos lados, nem sequer falou, respondendo apenas com um esbugalhar de olhos, eriçando as farfalhudas e díspares sobrancelhas que lhe escondiam a enorme e gordurosa testa. Viu-se o espanto na sua cara, pálida e prenhe de resolução, não era só ele que tinha tomado a decisão. A sua expressão, pela primeira vez, transparecia agora a dúvida, por entre pequenas gotículas de suor que lhe escorriam pelas salientes e avermelhadas maçãs do rosto,
- Mas será que fui assim tão infeliz? Comentou por entre dentes em sede de monólogo, por entre um cigarro meio partido que alguém tinha abandonado por ali e que o fumou em dois ou três tragos.
Deu por ele estendido na cama a olhar para o tecto coberto de teias e aranhiços excitados que chiavam e saltavam, como que num festim festejando a decisão tomada. Ao seu lado, a sua mulher que ressonava aconchegada pela ignorância, aquecida por uma combinação de renda de mau gosto de tom nácar e amarelo, deixava-o de certa forma triste, é que apesar de tudo, a vida fê-lo amá-la. Encontrava-se estranhamente calmo, que nem as asas compridas de um condor errando pelos céus, e o seu pensamento vagueava pelo espaço sideral de lembranças, embora não pensando em nada em concreto. Adormeceu tranquilamente que nem um bebé recém-nascido aconchegado e saciado pelo leite materno quente e mamas e amor da mãe direito ao grande dia que se encontrava cada vez mais perto.
Era manhã, cantavam os irritantes galos que gritavam há mais de duas horas, desde que o sol se levantou e alumiou a vila e o campo e escondeu o escuro e a treva por umas horas. A sensação era única, o dia final ditado pela decisão havia chegado. O silêncio que o rodeava desde há uns dias tornou-se ainda mais quieto, insuportável e aconchegante, quase como se soubesse do aproximar da sua quase não existência. Encontrava-se calmo apesar do leve tremelicar dos compridos e calejados dedos da mão direita que escondia no bolso rasgado das calças untadas de óleo e sujo e outras nódoas já imperceptíveis pelas infinitas lavagens.
Saiu normalmente de casa e dirigiu-se ao café de sempre, ou pelo menos dos últimos anos, onde sempre bebia um café meio queimado e um medronho, depois de uma sandes de presunto da terra, com apenas uma fatia de presunto e manteiga, como assim dizia a empregada,
- O mesmo de sempre senhor Pedro? Na sua matinal voz sedutora de taberna, que, por entre os sorrisinhos e gritinhos que lhe lançava, constituía quase sempre o ponto alto do seu dia igual a todos e aos próximos. Sentia uma calmaria que lhe saltava do peito apertado pela camisa de um xadrez encolhido, que nem as grades da choça, que a mulher lhe tinha comprado como prenda de aniversário a um cigano encardido que voltava sempre para todos os mercados.
O dia passou-se depressa, por entre a visita a um e outro cliente que interesseiramente lhe pedia mansões mal amanhadas pelo gosto bimbo de serrano para amanhã, a custo de mercado,
- Ó vizinho faça-me lá um preço de amigo que isto anda mal. Não se chateou, respondendo que sim a tudo o que lhe foram perguntando, movido por uma paz de esquecimento, brilhante, que o acompanhou durante o vagaroso andar dos ponteiros do tempo. O ténue sol que se fez anunciar logo pela manhã, foi raptado a meio da tarde por um frio polar e nuvens escuras, de um profundo negro africano, como que anunciando um juízo final específico já decidido, embora ainda anónimo para todos os outros.
Jantou embrenhado no prato cheio de um arroz de feijão mal-amanhado, que ainda assim lhe soube a caviar e vinho francês caro que nunca chegou a beber, porque a vida de pobre é assim mesmo. Bebeu uma garrafa de vinho tinto carrascão, gramujeira, daquele que até a comida cospe quando temperada, e tudo lhe pareceu ainda mais claro. Saiu de casa sem se despedir rumo à primeira tasca que encontrou e, levantando o forte indicador direito que a vida lhe deu,
- Chefe, dê-me uma aguardente das grandes se faz favor, e viu, acompanhado por um bêbado qualquer, desgraçado pela bebida, posto de parte pela família pelo seu “problema”, o glorioso pela última vez, que jogava para a taça com uma equipazalha da terceira divisão e ia ganhando (mal), cumprindo o dever que o peso do emblema lhe impunha. Bebeu outra e outra e outra aguardente em copos baços e mal lavados, até os sentidos e visão lateral encurtarem ao ponto de ter novamente a certeza da decisão que havia tomado.
Não era tarde, despediu-se do seu novo amigo, que mal conseguia falar e mesmo aguentar-se em pé, por um dia de trabalho intenso em várias tascas e cafés e bares para onde a vida o tinha destacado, apoiada pela recente mobilidade laboral, e desapareceu pela calçada do passeio da rua principal, de cabeça inclinada para baixo, revisitando o tempo vivido que o levou até ali. Movia-se a passos pequenos e marcados e ziguezagueando foi andando até chegar ao final da estrada civilizada, metendo-se sem pensar por uma azinhaga de terra batida. Chovia agora, miudamente, e continuava convictamente arrastando as pesadas botas enlameadas, por entre barulhos da noite de insectos cancerosos e mochos gordos de olhos brilhantes e julgadores e estevas afiladas e árvores velhas, cheias de vida, que o tocavam com os esguios ramos perdidos no negro da treva da noite tentando segurá-lo e afastá-lo do seu desiderato, da decisão. Mas, nada o podia parar, a decisão estava tomada há muito tempo e continuou sem parar, marchando sob o duro rufar de tambores de uma ópera macabra qualquer de Mozart, rebolando por vezes rasteirado pela bebedeira que carregava e que pesava juntamente com a roupa encharcada e suja colada ao corpo, refrescante, até chegar à porta da casa que o viu nascer, agora triste e despida, abandonada. Esvaiu-se em lágrimas e caiu de joelhos quase tocando com a cabeça na lama grossa e crescente, que lhe dava as boas vindas.
Num instante reviu toda a vida, desde o momento inicial de que se lembrava e que brincava exactamente no mesmo sítio onde se encontrava agora ajoelhado, procurando um perdão divino que o ilibasse de todos os pecados humanos que cometeu, até ao abandonar do berço que o pariu, o nascer de filhos pensados e não pensados e depois os netos, o sucesso alcançado medido pelo dinheiro que deixava numa conta escondida na Caixa Agrícola e alguns bens feitos com as suas próprias mãos, discussões e bebedeiras, felicidade e amargura, vida e morte. A epifania de uma vida pequenina, vazia e insossa que via agora reflectida na água, fonte da vida, que empunhava nas mãos arrumadas em forma de cocharro e que reluzia intensamente como que anuindo na decisão tomada. Não fazia sentido. As lágrimas continuaram a jorrar copiosamente como a chuva morta que agora caía, embutidas por pequenos e estrondosos trovões que luziam lá no cimo da serra fechada e intransigente.
Entrou em casa, após arrombar a porta feita de um carvalho roto e carunchoso, abandonado, e ficou especado a olhar para o negrume ácido que cobria as quatro paredes que o conheciam, enfeitado por fungos e musgo que por ali se abrigou e criou pequenas criaturas que habitavam ordeiramente o chão que pisava estático. Procurou e encontrou facilmente um velho baraço, que em tempos tinha servido para puxar um jumento cinzento e teimoso e amigo, e lançou-o a um barrote roído por insectos xilófagos insaciáveis. Fez um forte nó, que tinha aprendido nos tempos em que foi obrigado a servir a pátria na tropa e onde formou o carácter que até hoje, até hoje, mostrava, e, puxando um antigo banco que ali havia sido esquecido, ergueu-se, perguntando-se até que ponto seria, verdadeiramente, chorado. No minuto seguinte, atirou-se aconchegado pelo perfeito nó torcido de escuteiro que conseguira fazer no áspero baraço e estrebuchou umas quatro ou cinco vezes até se esvaziar o mais recôndito e forte pedaço de vida que o levantava todos os dias há mais de cinquenta anos, deixando-o inerte, embalado num certo balançar que finalmente lhe trazia paz.
A tempestade que se fazia sentir acalmou imediatamente e o silêncio foi perdendo a velha casa que também se foi perdendo por entre a noite e vegetação densa de castanheiros e amieiros, cada vez mais longe até desaparecer, pequenina, talvez para sempre e aos poucos todos esqueceram e viveram, foram vivendo.

3 comentários:

  1. Quer dizer que o mê amigo é um escritor assim a dar para o (ah isto não é cá) Lobo Antunes?

    Muito bom, Jorge. Li sem pestanejar. Levas jeito para isto e com poucas paragens e muita dinâmica.

    Apenas um reparo: o nome devia ser Ti Manel ou Ti jaquim, que isto não há cá "Pedros" pra ninguém.

    :)

    Continua. Fiquei fã.

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  2. Olha que esta coisa não está nada má não senhor. Mesmo nada má.

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  3. Não estou a perceber qual é o teu problema com o ALA. Gostei muito deste.*

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ehhhhhh