quinta-feira, 19 de março de 2009

A caixa.

A caixa estava fechada. Fechada e selada. Em cima da mesa oval, longa e brilhante de verniz velho, jazia a caixa. Jazia o dono da caixa algures nos Prazeres, enterrado no sábado pela irmã, alguma chuva e o padre. Isto porque o coveiro teve que atender uma chamada e só voltou já quase meia hora depois para ajudar o pessoal da funerária na descida do caixão, já sem a companhia do assistente do divino.

Como se do caixão saísse, a voz trémula, profunda, gasta por quilómetros de tabaco, era agora repetida pelo procurador, também ele já longe da flor da juventude, um advogado que acompanhou o senhor Samuel desde o início dos tempos. E mesmo estando escrito, como todos depois leram, mesmo dito pelo procurador, como todos ouviram, era difícil de encaixar o veredicto do senhor Samuel.

Neste início ninguém se opôs ao trato imposto pelas quatro folhas manuscritas autenticadas no cartório de Loulé. Uns porque não queriam abdicar da pequena fortuna que isso implicava, outros porque achavam nisso uma brincadeira de tão mau gosto que até se riam.

A caixa tinha que cumprir um ritual algo absurdo, um pouco patético até. Teria que estar quinze dias com cada um dos legatários, em lugar visível e disponível a qualquer hora do dia ao procurador para aferir que esta nunca era aberta por ninguém. A sequência de rotação começava nos irmãos, do mais velho para o mais novo, passava para os sobrinhos e regressava. Um ciclo algo conturbado do ponto de vista geográfico, mas recompensador - por cada ano que se conseguisse dividir esta tarefa, os herdeiros recebiam um quinto da herança. Qualquer cabecinha percebia que bastavam cinco anos para receber tudo. E o tudo não era pouco. O senhor Samuel tinha um vício raro – enriquecer. Enriquecer era o motivo para continuar até que a saúde o permitisse.

A caixa era em pau-preto. Tinha dois selos, parecidos aos dos contadores de electricidade mas com muito mais pompa. Um era vermelho o outro roxo. Um cubo com vinte e dois centímetros de aresta. Relevos sobre caça com figuras gregas sem vestes na tampa que não apresentava dobradiças, porque estas eram interiores. No limite da tampa, junto à aresta que recebia os selos uma gravação minúscula: a César o que é de César.

A primeira semana foi mesmo muito conturbada. Os irmãos viviam numa área equivalente a um círculo com um diâmetro de 300 quilómetros. Quando tocava aos sobrinhos o diâmetro dobrava. Muitos telefonemas, muitas discussões antigas a virem ao de cima, algumas mágoas minúsculas mas tal como o fermento, pouca coisa que faz crescer muita. Quem leva o quê a quem, quando leva o quê de onde para onde e o que deve ser feito quando não dá para fazer o que devia ser feito. Mas lá se encaixou tudo, o móbil era óbvio para todos, mas ainda assim esses todos esforçavam-se por fazê-lo com um sorriso de vitória, como se a sua parte fosse o de menos importância. Não havia necessidade de ficar mal na figura e entretanto os mais ajuizados apressaram-se a celebrar cláusulas entre si de modo que aquele que violasse o testamento indemnizasse os cumpridores. O móbil crescia, mas era sempre o mesmo.

A irmã foi a primeira a receber a caixa. Ficou visível aos olhos de quem a quisesse ver, em cima da televisão da sala. Uma televisão quase tão morta como o seu irmão. E diga-se quase porque ao domingo fazia de rádio e passava a missa do quarto canal. Mas nesta quinzena foi diferente. A televisão foi limpa, ligada e tinha uma espectadora diária. Ou pelo menos assim parecia, porque o que realmente estava a ser contemplado era a caixa. Era magnética, no seu negrume, as figuras gregas, os selos – tudo puxava os olhos para ela. E no entanto quem em casa entrasse jamais iria prestar atenção àquele cubo ridículo em cima de uma televisão velha, ainda a preto e branco vejam só!

A primeira semana passou-se relativamente bem, sem grande agitação. Mas à medida que chegava o dia da passagem de testemunho crescia um sentimento estranho, incómodo dentro da Menina Gertrudes. Aquele sentimento de dependência que sempre o irmão lhe causara, de impotência perante os argumentos dele. Aquele servilismo voluntário que sempre acabava por marcar o ritmo entre eles. No fundo uma inveja profunda. E talvez por isso no dia da troca, face às dificuldades do irmão José de receber a caixa, Gertrudes não se fez rogada, bem pelo contrário. “A caixa fica, não tem problema, quando puderes, eu compreendo.”

A caixa lá seguiu para a casa do José. O José era daqueles cinquentas todos modernaços, namoradas para a esquerda, namorados para a direita. Levava a vida que queria, como queria, com quem queria. Mas no fundo nunca estava em paz – o normal. A caixa foi largada com todo o desprezo do mundo em cima do aparador da entrada. Com o mesmo desprezo com que sempre lidou com o irmão. O irmão não passava de um midas, arrogante e antiquado movido apenas pela sede de mais, completamente incompatível com os anseios e necessidades de José. José queria falar sobre bons vinhos, Samuel queria comprar vinho barato. José queria conhecer raparigas, Samuel queria encontrar uma dona de casa. José queria viajar para conhecer o mundo, Samuel queria viajar para fazer negócios pelo mundo.

Ao quinto dia José tropeçou com o olhar na caixa. Aproximou-se e leu a inscrição. “O meu irmão sempre foi um bocadinho estúpido, sem dúvida. Nem ele sabe quem foi César… Aqui está esta merda, a rodar de casa em casa… para quê? Até depois de morto tem que mostrar que manda… Foda-se! Não há paciência.”

E bem que lhe apeteceu quebrar os selos, tomá-los da ira que ainda guardava pelo seu irmão mesquinho, ordinário, vulgar e no entanto sempre moralista, sempre com a sua opiniãozinha sobre tudo o que se passava na sua vida. Mas lá se controlou e manteve a caixa intacta. E acabou, nos dias que restaram, a olhar para ela com um misto de curiosidade e raiva… sempre mantendo a distância que sempre mantivera do irmão.

A caixa seguiu para o sobrinho mais velho. O filho único de Gertrudes, ainda que toda a gente lhe chamasse de Menina Gertrudes, era um fulano pacato, pouco ambicioso, pouco tudo em geral. Menos no peso. Sérgio era redondo visto de cima e oval visto de frente… um porta-aviões humano, sempre pronto a engolir mais um hambúrguer, a beber mais um batido, a sorver mais uma cola e a dormir… dormir… dormir

Talvez por isso durante a primeira semana a caixa passou despercebida, algures no meio do que poderia ser tanto um quarto, como as traseiras de uma pizaria. No entanto num dia de pouco que fazer lá se fixou na caixa. Só lhe ocorriam aquelas caixas de bombons do Natal… Talvez por causa do colorido dos selos, talvez pelo preto da madeira africana – o que interessa é que só de ver a caixa cheirava-lhe a chocolate. E nada lhe tirava da ideia que era isso que lá dentro morava. Como um íman de chocolate que chamava com um assobio fino e lento. Afinal o tio nunca comera chocolates na vida, se calhar guardara naquela caixa algo que não era para ele, mas sim para quem gostasse. “Mas porque iria alguém guardar chocolates numa caixa e submeter as pessoas a este ritual estranho? E porque não?” Ainda que até ao próprio Sérgio todo este desfiar de especulações parecesse de todo ridículo, o certo é que elas foram ganhando espaço, cravando raízes, crescendo pelas paredes do pensamento até que o que a qualquer um parecia do mais descabido, afinal não seria assim tanto, afinal era bem possível e se calhar era o mais certo. Era a única explicação.

E os últimos dias foram passados a conjecturar sobre a possibilidade do conteúdo da caixa, alimentado um rol de possibilidades infinitas, alimentares, monetárias, místicas de tal modo que quando entregou a caixa à prima, teve que o ser quase à força.

“Ó Sérgio, assim ‘tá difícil! Dá-me lá isso que ainda tenho que ir à biblioteca! Vá despacha-te. O meu pai vai-se passar se lhe contar esta cena.”

Inês era filha de José e de uma das suas diversas mulheres. Josefina acabou por traí-lo com o seu próprio namorado, um amigo colorido lá do serviço. No dia em que José apanhou Josefina com o Miguel na cama livrou-se de três responsabilidades: mulher infiel, namorado clandestino e filha vampira. Um golpe de sorte, sem dúvida.

Inês era uma mocinha espampanante, plástica, toda ela aipode, toda ela aifaive, sem tempo para conversar, com pressa de chegar não se sabe bem onde e movida pela vaidade pequena de se ver bem vista. Mas não era rapariga para perder tempo em ilações sobre caixas e sei lá mais o quê. “É preciso guardar este trambolho quinze dias, né? A malta depois recebe uns cobres, né? Então passa p’ra cá isso rapidinho que ainda tenho que pôr umas cábulas no telemóvel pró exame de Sociologia, senão ainda não é este ano que termino a Faculdade.” E seguiu. Caixa no automóvel, banco de trás atulhado de sacos de zaras e mangos e sei lá mais quê, e a caixa. Sempre silenciosa, sempre pesada, sempre magnética.

Já à noite, em conversa com as amigas, referiu-se à caixa como um talismã oriental que lhe tinha comprado o Rodrigo – um super namorado, com um super carrão e uma super vida. A mentira até se percebe, não ficaria nada bem manter uma caixa com ela por 15 dias por uns trocos…

A conversa evoluiu da mentira pequena e inocente para todo um esquema em que Rodrigo foi obrigado a acompanhar como um cúmplice, toda uma história infindável cada vez mais rica em pormenores. A caixa comprada na Índia, um talismã benzido por um xamã qualquer, o valor exorbitante da caixa. E no final sempre exibida.

No dia de fechar o círculo a caixa foi devolvida com relutância – afinal, o talismã exercia sobre ela até uma boa vibração, e era chato aparecer sem a ajuda divina dentro do carro.

E a partir daqui o ciclo foi-se mantendo. De cada vez que trocava de tutor o sentimento de apego aumentava, fechando o circulo, apertando as vontades, aumentando a necessidade de ter a caixa, de odiar a caixa, de venerar a caixa.

E ainda assim a caixa manteve-se fechada, tal como o testamento assim o exigia. E quinzena a quinzena o chamamento inicial passou do quinto da herança cobiçada para algo novo e movediço.

Gertrudes necessitava da caixa, dominar os seus medos. José queria partir a caixa, libertar-se da raiva. Sérgio ambicionava o conteúdo, doce ou amargo, ilusório ou real, a guloseima ideal. Inês precisava da caixa, exibi-la, rechear o seu status com ela.

À quarta ronda juntaram-se os quatro por um acaso não ocasional. De um modo ou de outro acabou por se juntar a necessidade e o engenho e lá se reuniram com o procurador. Rápido se percebeu que estavam todos de acordo no desacordo, que é o que acontece quando se quer dividir em partes inteiras o que é uno.

“Meus senhores, o testamento é claro. Não podem abrir a caixa e não podem apartar-se ou apropriar-se dela, é sempre uma responsabilidade, nunca uma propriedade. Não há nada nas entrelinhas e ainda assim não sei se estão a cumprir o testamento, porque manifestamente vejo-vos aqui aos quatro!”

Como assim? A pergunta rachou o ar e instalou uma electricidade na sala. Após estes meses de rotações e de ambição, o que falhou? Alguma regra não enunciada? O que queria este palhaço moribundo dizer com isto?

Ao que parece uma das regras era que não podia haver reunião de herdeiros nomeados para discussão alguma relacionada com a caixa ou o seu eventual conteúdo.

Os ânimos alteraram-se. As vozes cresceram, treparam as paredes e fugiram com o som pelas arestas da sala, vincadas e inflexíveis. E no meio da troca de argumentos, a caixa chamou pelos seus tutores e estes jogaram-se a ela.

A alma da coisa passou de verbal a física. E no meio do contacto entre corpos a caixa caiu e quebrou os selos. A tampa separou-se e o interior da caixa expôs-se aos olhos alterados dos quatro animais que entre si trocavam empurrões e puxões.

A caixa estava vazia.

Ou pelo menos assim parecia. O procurador ajeitou os óculos, acertou o cabelo, compôs o fato.

“Eu sabia que era isto que ia acontecer, eu sabia! e o Samuel também, só que tinha a tola esperança que não… bom. Mas a caixa não está vazia. Gertrudes apanhe a tampa por favor…”

Gertrudes vergou-se e apanhou a tampa com alguma vergonha. Nas costas da tampa uma fotografia estava colada com fita adesiva. Uma fotografia velha e amarelada, cantos coçados e película estalada. Três crianças, mal vestidas, todas em escadinha junto a um cão quase do tamanho deles. Uma menina e dois meninos. Três sorrisos luminosos, tão luminosos que nem a idade da fotografia, a pobreza do suporte e os farrapos dos modelos conseguiam encobrir a luz deles. O cão rematava com um ar pacato, quase Velásqueziano, não fosse estar acordado.

As mãos nodosas, secas, muito nervosas viraram a foto… “ Eu e os meus irmãos muito felizes juntos” A letra infantil denunciava o escriba. Samuel sempre tinha tido uma letra muito pouco apresentável, mesmo depois de todos os estudos que fez. E denunciava um amor que a sua avareza sempre tinha escondido, porque havia algo no meio que sempre os dividira, até depois da morte. Mas a César o que é de César.

A fortuna foi então entregue, segundo cláusula testamental, a um indivíduo que geria uma empresa associada a uma organização não governamental de micro crédito especializado em empresas de cariz familiar e de apoio à família.

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