quinta-feira, 5 de março de 2009

Eu daqui vejo tudo.

Eu daqui vejo tudo. Os que entram, os que saem, os que se esquecem do carrinho, os que têm que ir ao multibanco. Eu vejo as famílias, os solteiros, os separados - cada um com o seu cesto a comprar coisas repetidas. Vejo os putos que vão comprar cerveja, os ucras que vão comprar muita cerveja, as trintonas que vão comprar cremes e as quarentonas que vão comprar muitos cremes. Sou omnisciente. Sou omnipresente. Sou o fim de um processo que começa fora daqui, em casa, num anúncio, numa lista pendurada no frigorifico, num telefonema à ultima da hora ou num pensamento prolongado com o olhar fixo numa esquina da despensa.

Eu conheço quase tudo. O código do garrafão de 5 litros é diferente quando vem num pack, a fruta que tem que ser pesada, mangas, pêra abacate, pêra rocha, maçã starking, maçã raineta, maçã pink rose, pêro, uva globe, uva branca, uva cardinal, tremoço nacional, banana da madeira, banana que não vem da madeira, todo o tipo de citrinos, ananás e abacaxi, abacate, já disse manga? As promoções, os vales de desconto, os códigos errados, e claro, um ou outro produto que não tem código porque a malta do escritório não sei quê mas vai ficar amanhã.

Eu lembro-me de tudo. E é por isso que isto me custa tanto. E é por isso que não preciso de televisão. E é por isso que tenho que desabafar com alguém… porque se não o fizer não sei se alguma vez poderei ter o privilégio de esquecer. Eu lembro-me do preço do sabonete Vitalux há dois anos, 58 cêntimos. E os preservativos Qualitat estavam a 7,32 a caixa mas agora apesar de mais caros fazem uma promoção gira que oferece um colorido. Eu não precisava de decorar estas merdas… bastava passar o código e ouvir o bip. Mas a puta da curiosidade sempre me levou a melhor. Então eu decoro tudo… sou um preçário vivo. Mas ainda assim um preçário obsoleto e disfuncional, porque eu não posso introduzir um único preço! Tem que fazer bip. Bip. Bip. Mas se fosse só isto eu não me preocuparia. Afinal, mais preço menos preço, não seria uma fiada de números que me tirariam a tesão. Eu lembro-me dos que entraram, quando entraram, a cara que levavam, a roupa que carregavam, os que saiam, as compras que pagaram. E sei mais… sei pormenores da vida deles. Muitos pormenores.

A Srª Maria Dolores Graça Nascimento Pinto, faz compras sempre à sexta à noite. Compra sempre um avio que é obviamente semanal e leva uma eternidade a encontrar o cartão de débito. Leva sempre uma ou duas garrafas de vinho tinto, geralmente da promoção mais em conta, como a da semana passada, Mosteiro Velho, por 3,20 a garrafa. Nunca vi aquela mulher de calças. Ainda bem.

O Fernando taxista vem todos os dias pelo meio-dia comprar pão. Aquilo nem é pão, é um sucedâneo de pão. Ele sabe-o e até já o admitiu à minha frente. Tem sempre uma confusão imensa de coisas no bolso, incluindo pequenos pedaços de unha que saem junto com moedas, notas e cartões de prostitutas que ele ajuda na angariação. Desenganem-se se pensam que o pão é para ele. Já percebi que é para a mãe, houve um dia que ouvi a conversa no telemóvel. E lá está a cabra da curiosidade a registar tudo.

A Aida que mora no Bairro do Novo Baião não tem um padrão de compras. Nunca percebi ao certo, mas aposto que faz o resto das compras noutro sítio. O que sei é que foi casada, mas como já há um ano que não usa aliança… quem quiser que faça contas! Leva sempre aqueles iogurtes que fazem maravilhas a tudo: barriga, dentes, cabelo. Compra sempre daquelas marcas que são mais caras por motivo nenhum e sem razão aparente acabam por ter uma embalagem mais apelativa, como se subornassem as outras marcas para terem embalagens antiquadas. A rapariga vem sempre à pressa, esbaforida, sem vagar, tensa. Usa muita roupa vermelha, que lhe fica muito mal mas que insiste em mostrar as saliências e protuberâncias do seu corpo roliço e audaz. Nunca vi um par de tetas tão espetadas. Mas nem por isso elas se espantam com o meu olhar guloso, ainda nem bem tem o troco na mão já as mamas apontam para a porta de saída.

Não posso omitir a família do Zé Caixa. É uma comédia viva e por episódios. Primeiro vem a matriarca, muito pachorrenta, muito serena, muito feia, um buço de meter respeito ao mais digno chefe de família. Meia hora depois chega o senhor Caixa, sempre com o rego do cú a subir para fora das calças. Acho que faz parte do status de mecânico, é daquelas coisas, mecânico que é mecânico: calças cagadas e rego do cú a aparecer. Mas não compra nada, nem um palito. Vai só dar instruções à miss universo e regressa para o café, que também vejo daqui, e bebe mais um copo. Não interessa do quê, do que houver, beirão, amarguinha, cati çarque, ó homem ponha isso aí que eu só tenho 50 centimes. Depois, por último e triunfal chega a sogra do Zé. Ao que parece é a única com carta de condução, logo a única pessoa habilitada a levar a mercadoria a casa. Curiosamente, ou não, a única que veste roupa digna desse nome.

Estas pessoas são as estrelas principais. Os actores que entram em todos os episódios. Mas eu não esqueço os convidados especiais, os actores secundários, os figurantes, os duplos.

Um casal de hippies que em pleno Fevereiro apareceu a pedir à Susete do balcão de informações um guarda-sol, mas tinha que ser amarelo. Tinha que ser amarelo porque eles tinham mais ácido no sangue que uma bateria.

Um espanhol que queria pela graça e força de todos os santos populares pagar a conta em pesetas em pleno 2006.

As putas do Bar Cachalote que vêm à vez comprar uma dúzia de batons e três dúzias de preservativos. E um ou outro pacote de leite e muito esparguete, algum atum e sempre, mas sempre, água com gás… deve ser para o patrão.

O senhor agente Santiago que entrou duas vezes na tabacaria para comprar mortalhas de arroz e um isqueiro. Mas toda a gente sabe que ele não fuma, porque nem comprou tabaco. Ou se calhar fuma mas não fuma o que deveria fumar um agente da autoridade e até se calhar por isso é q só entrou duas vezes por lá.

Os casais de namorados, 14, 15, 16 anos a comprar preservativos, muito convictos do que são e do que querem, mas que nem por isso conseguem disfarçar o riso nervoso. Alguns foram pais este ano. Nunca fiar no látex ou na pressa.

E lembro-me da cara de todos os turistas incautos que pagaram o triplo por pilhas AAA do que pagariam na tabacaria, quando deveria ser ao contrário.

E não me esqueço dos episódios míticos, dignos de registo nos anais do retalho grossista e não só.

A vez que uma lata de tinta explodiu a meio do Verão. Foi de tal ordem que ainda existem luminárias com tinta verde manso referência C4003.

A vez que o nosso digno e douto gerente se peidou em quase estereofonia, que eu bem ouvi. Valeu-lhe ser nove e meia e o único cliente ser o Senhor Cabral que insiste em comprar peixe diariamente à mesma hora.

A vez que a casa de banho entupiu e havia não só o cheiro mas também um ribeiro de coisas que já foram nossas no átrio de entrada.
Mas isso seria mal menor.

Eu não esqueço os trocos que dei, eu não esqueço os talões de desconto que entreguei, eu não esqueço o valor de fecho desde 2004 e não esqueço o nome de uma única pessoa que me pague em cartão.

Não me consigo lembrar porque isto começou, nem quando me dei conta.

E sinto falta dos que não esqueço. Do António carpinteiro que morreu faz dois meses que comprava ginginha, do sô Castro, um viúvo subterrâneo que foi viver para o Algarve, da Antonieta que levou uma pazada de uma camião e agora nem tão cedo volta cá, que comprava sempre quilos de bolacha Maria. Curiosamente nunca mais houve bolo bolacha na cafetaria.

E sinto falta dos artigos que já não vendemos. Do lava-tudo com cheiro a maçã, que derramou na zona dos frescos e empestou as condutas do ar condicionado por meses, dos cotonetes bicudos que toda a gente reclamou, das vassouras tradicionais que não tinham código.

E sinto falta dos colegas. Do Chico que depois de ser pai dedicou-se a vender haxe, da Susana que casou com um militar e foi para o Porto, do Miguel que começou a beber para esquecer e esqueceu-se de parar.

Eu não consigo esquecer e tenho medo que venha a piorar. Tenho medo de me vir a lembrar do futuro. E aí eu vou saber que algo aqui dentro da caixa já não soma, nem divide, só multiplica.

Ser caixa ainda assim é uma profissão a ter em linha de conta. Ganho 480 euros por mês, um dia de folga por semana, dois uniformes e tenho um circo diário só para mim. Para quê televisão?

1 comentário:

ehhhhhh