- Paulo?! Estás ai?! Balbuciou descendo e subindo a mão aberta, embora com os dedos unidos, em frente à minha cara. Estava noutro mundo, viajava de olhos abertos. Este caso, apesar de aparentemente simples, abalou com as minhas convicções sobre a culpa. Agora consigo ver o quão volátil pode ser a culpa e a moral, será que a lei deve mesmo ser completamente amoral? Como conseguiria eu julgar o que quer que fosse depois disto?!
- Foda-se, está a dar Broken Social Scene, pede aí mais uma preta, disse-lhe.
– É por isso que curto este bar pá…
- Acredita, e está sempre carregado de gajas, respondeu-me com um inocente ar baboso e de olhos brilhantes agarrados ao rabo de uma tipa que falava com o namorado sobre uma exposição qualquer que não interessava ao diabo. Agarrei na cerveja atirando-a nervosamente à goela e fechei os olhos por segundos.
– Pedro, já viste o caso fodido que apanhei? Não consigo pensar noutra coisa.
- Qual? O do traficantezinho?
- Iá, que cena a história de vida do gajo…
A noite passou-se rapidamente até porque não estava com cabeça para a confusão etílica do Bairro Alto e em pouco tempo estava no sofá individual da sala sentado de braços cruzados, a fumar um cigarro e a pensar novamente no caso. O tipo devia ter cerca de quarenta e cinco anos, tinha um aspecto estranho, abacorado, um bigode curto e triste e tinha umas feições genericamente amarguradas. De acordo com um relatório médico que se encontrava apensado ao processo, tinha o corpo tomado por dezenas, talvez centenas, de pequenos tumores afiados que lhe corrompiam o corpo e a alma. Provavelmente não viveria muito mais. As linhas largas das suas olheiras entoavam baladas trágicas de uma melancolia arrepiante, parecia já ter caído no abismo por várias vezes. Quando abriu a redonda boca para falar pela primeira vez em juízo, de pé, atrofiado pelo medo e pela responsabilidade, tiniu tetricamente algumas palavras que tive dificuldade em ouvir no imediato,
- Senhor juiz, eu vendia o produto sim senhor, mas aquilo dava apenas para poder comprar para mim próprio, acalmava-me as dores. A minha vida é uma miséria, ainda por cima agora com a minha filha a estudar…
- E que tipo de drogas vendia?
- Ó senhor juiz, vendia apenas haxixe e erva aos miúdos.
- Ai sim?! Mas diga-me lá então, a que miúdos vendia? Perguntei-lhe animosamente.
- Os que me apareciam lá eu vendia-lhes, eles diziam que eu vendia barato e que era um cota fixe. Quer dizer, vendia a toda a gente, não dizia que não a ninguém que lá fosse comprar e havia gente de todas as idades e classes, não faz ideia, respondeu mastigando em seco.
Mas eu fazia ideia. Respondia-me com verdade a tudo o que lhe perguntava, conforme corroboravam os seus olhos largos e cansados. Quase como se não houvesse culpa, quase como se não estivesse a fazer nada de mal. Apesar de saber que se tratava de uma actividade ilícita, de certa forma, não possuía uma verdadeira consciência da ilicitude dos actos que perpetrava havia anos.
O dia finou-se rapidamente. Estava de novo sozinho em casa e o raio do homem não me saía da cabeça. Ainda pensei em telefonar à Maria, o esquema que na altura me entretinha os tomates, mas nem para me masturbar tinha vontade. Estendi-me em cima da carpete da sala, castanha e de uma rugosidade excessiva, amontoada de pó, a Svetlana já não aparecia há umas semanas não sei porquê, e fumei um marlboro, enquanto partia e trincava línguas de gato que a minha mãe tinha comprado, agora caídas e espalhadas ao meu lado, e pensava no pecado que cunhava o traficante, com os olhos vazios a boiarem pelo tecto, tentando interpretar o puzzle criado por uma aranha enorme e anoréctica que cavalgava pelo branco enferrujado de uma mancha oblonga. Havia discos espalhados pela zona perto da aparelhagem, conseguia ver a banana warholiana do álbum dos Velvet Underground e mais dois ou três discos de blues de uns americanos quaisquer, mineiros acho, que tinha andado a ouvir nos últimos dias. O gira-discos que tinha comprado na feira da ladra uns meses antes continuava a trabalhar, contra todas as expectativas, e ia tocando um antigo disco de jazz, furtado ao meu tio de Alvalade, Coltrane, que me ajudava a meditar e acalmava-me. Este caso lembrou-me os bons tempos de festivais de verão, Sudoeste e Paredes de Coura, agora extintos pelo respeito à ancestral deontologia da moral jurídica, onde todos fumavam tudo o que houvesse, de erva a eucalipto, passando por coca até mesmo tendas, bebiam até os olhos cerrarem de bebedeira e as pernas tremelicarem com o peso da cevada que carregavam na pança, lanchavam bolos ou iogurtes de ganza comprados a chungas moribundos que por lá andavam, em trabalho, espojados pela terraria ou mesmo preparados em família nas tendinhas dispostas erraticamente por entre eucaliptos e calhaus, entre dezenas de outros produtos alucinogénicos que estimulavam a festa e tornavam os concertos de merda em espectáculos de uma vida. Eu próprio fumei droga que se calhar foi vendida por este tipo. As boas lembranças de verões de loucura e morte cerebral, encadilhadas com todas as interrogações que este caso me provocava, foram-me embalando até acordar por volta das 5h30 deitado ainda na carpete ruça já, que tinha vindo da casa dos meus pais, e me aquecia por entre os nacos de pó e ninhos de ácaros que por lá habitavam. Fui dormir.
Acordei sobressaltado,
- Foda-se, já são 8h30, levantei-me e vesti-me rapidamente e saí a correr sem sequer beber café, nem comer a habitual sandes de fiambre do talho da Helena perneta, salgadinha com manteiga mimosa, com que me deliciava todas as manhãs. Já estava atrasado para a audiência final do julgamento do traficantezinho e, ainda por cima, apanhei um trânsito fodidamente entravado, o que mexeu ainda mais com o meu humor matinal de trabalhador do serviço de finanças.
A sala estava apinhada de gentalha com os nervos a crepitar à flor da pele, tudo sentado à espera do meritíssimo, eu, ainda ontem uma criança a enfrascar-me que nem um alarve na Universidade, venerado na maioria das tascas e bares lisboetas e coimbrãs, hoje um respeitado e promissor jovem juiz, judge dread para os amigos mais próximos, que fazia a acostumada justiça pelos juízos criminais de Lisboa. Entrei na sala e todos se levantaram, de um salto sonoro, das cadeiras por reverência à minha negrinha imagem, vestida de beca, que eu próprio satirizo com um,
- Podem-se sentar, por favor.
- A audiência final, relativa ao Processo n.º 313/2008, vai prosseguir, entoei reverencialmente.
A multidão que invadiu o tribunal, deixando a sala a transbordar de povinho, que não sabia sequer o que ali fazia - será que o caso passou na TVI e eu não me apercebi, pensei -, ainda vociferou uns “assassino” e “queres matar-nos as crianças, bandido”,
- Ordem no Tribunal, resmungou alto a madeira do martelo que bateu várias vezes até que a desordem acalmasse e se calasse. A sala ficou à pinha, como poucas vezes tinha visto em dois anos de juízos criminais, tornando-se num espectáculo hollywoodesco, o que me aumentou a nervoseira que já dificilmente conseguia disfarçar e que fui tentando dramaturgicamente dissimular.
E assim foi, o julgamento continuou, devorando tempo, por entre as vazias alegações num português de cachupa do Procurador do Ministério Público, um tipo preto e vão, e as dissertações sobre a moral de um advogado de acusação atarracado e de sorriso sarcástico, que vestia um minúsculo fato italiano da colecção passada e uivava com as suas mãozinhas de pardal em riste como se a razão e a moral em si residissem, movimentos que os meus olhos foram aquilatando lentamente. Na hora de decidir, apesar de não possuir quaisquer dúvidas sobre a subsunção dos actos do traficantezeco ao crime de tráfico de estupefacientes, que o meu código riscado e amarelejado, por entre as milhentas glosas que as noites e noites perdidas de estudo, me confirmava, numa antinomia quase visceral, perdia todas as certezas, porque moralmente, e mesmo em termos abstractos considerando o caso concreto do homem, a minha razão, bem lá no fundo, dizia-me outra coisa. Fiquei confusamente afectado e sem saber muito bem o que fazer.
- Diga-me, como se apresenta perante este Tribunal?
- Culpado, senhor juiz, respondeu-me envergonhado.
- Tem alguma coisa a acrescentar em sua defesa?
- Senhor juiz, eu queria novamente pedir desculpa e dizer que estou arrependido, mas nem sequer ganhava dinheiro com isto, ganhava apenas o suficiente para pagar as contas e para comprar para consumir, era a única coisa que ainda me ia acalmando as dores e os tumores que me comem a carne, aos poucos, todos os dias, e olhe que tomei dezenas e dezenas de medicamentos e tratamentos que os médicos me foram prescrevendo, embora nenhum deles me aliviasse o sofrimento, ainda pensei em atirar-me da 25 de Abril...
- Eu sei que isto não é vida senhor juiz, mas também não ando por aí a matar ninguém ou a roubar e o senhor juiz até me deve perceber, na sua juventude também deve ter fumado uns charutinhos e, no entanto, está aqui, e bem, enquanto digno representante da justiça e do país.
- Ordem no tribunal, o martelo voltou a cascar na mesa raivosamente,
- Mas o senhor está a insinuar que eu também consumo droga, para se tentar justificar?! No interior, a confusão tomava-me – sim, fumei e não foi pouco e, de vez em quando, quando em festa, ainda atiro umas golfadas de fumo folgazão para a garganta e travo em troca da calmaria que me consome de seguida. Até espampanantes e coloridas aves pré-históricas, há muito extintas, eu vi, e irmãos há muito perdidos encontrei, e codornizes gigantes e fugidias, que comigo gozavam, persegui por bairros anónimos…
- Ainda que isso fosse verdade, que não é, não lhe parece essa uma má desculpa para prosseguir uma actividade que é proibida e punida legalmente como bem sabe? Perguntei-lhe altivamente impelido pelos esticados braços que se encavalitavam na mesa que nos separava, embora, por dentro, estivesse pouco ou nada convicto daquilo que asseverava.
O homem semicerrou os olhos e fitou o chão obliquamente como que assentindo aquilo que a moralista justiça lhe tinha acabado de questionar. O meu hemisfério direito, e o esquerdo também, não parava de demandar sobre até onde deverá ir a mão estadual penalizadora na protecção da nossa vida e saúde? Onde reside então a liberdade individual de cada um? Foda-se, mas será que isto faz algum sentido?
A sessão acabou e o homem foi levado em braços até à sua cela por dois polícias com um ar aparvalhado, um gordo, baixo e rosado e um alto, de cara suja e voz intermitente, ambos de grave sorriso na cara pela justiça e lei cumpridas e pelo honorífico serviço que estavam a prestar à sociedade, por entre o cagaçal que a multidão que me havia invadido o Tribunal ia fazendo, que o despejaram na solidão da treva de um pequeno cubículo escuro e sebento, apartador dos males da vida.
A sentença foi lida uns tempos depois, oito anos de prisão que afastaram o pobre coitado da luz do dia, ameaça da sociedade, das ruas e das famílias, pelo crime de tráfico de drogas leves. Eu, pouco tempo depois, em Setembro, causticado com o maniqueísmo que conheci na lei, e depois de perder a Certeza, concorri para os tribunais administrativos.
- Foda-se, está a dar Broken Social Scene, pede aí mais uma preta, disse-lhe.
– É por isso que curto este bar pá…
- Acredita, e está sempre carregado de gajas, respondeu-me com um inocente ar baboso e de olhos brilhantes agarrados ao rabo de uma tipa que falava com o namorado sobre uma exposição qualquer que não interessava ao diabo. Agarrei na cerveja atirando-a nervosamente à goela e fechei os olhos por segundos.
– Pedro, já viste o caso fodido que apanhei? Não consigo pensar noutra coisa.
- Qual? O do traficantezinho?
- Iá, que cena a história de vida do gajo…
A noite passou-se rapidamente até porque não estava com cabeça para a confusão etílica do Bairro Alto e em pouco tempo estava no sofá individual da sala sentado de braços cruzados, a fumar um cigarro e a pensar novamente no caso. O tipo devia ter cerca de quarenta e cinco anos, tinha um aspecto estranho, abacorado, um bigode curto e triste e tinha umas feições genericamente amarguradas. De acordo com um relatório médico que se encontrava apensado ao processo, tinha o corpo tomado por dezenas, talvez centenas, de pequenos tumores afiados que lhe corrompiam o corpo e a alma. Provavelmente não viveria muito mais. As linhas largas das suas olheiras entoavam baladas trágicas de uma melancolia arrepiante, parecia já ter caído no abismo por várias vezes. Quando abriu a redonda boca para falar pela primeira vez em juízo, de pé, atrofiado pelo medo e pela responsabilidade, tiniu tetricamente algumas palavras que tive dificuldade em ouvir no imediato,
- Senhor juiz, eu vendia o produto sim senhor, mas aquilo dava apenas para poder comprar para mim próprio, acalmava-me as dores. A minha vida é uma miséria, ainda por cima agora com a minha filha a estudar…
- E que tipo de drogas vendia?
- Ó senhor juiz, vendia apenas haxixe e erva aos miúdos.
- Ai sim?! Mas diga-me lá então, a que miúdos vendia? Perguntei-lhe animosamente.
- Os que me apareciam lá eu vendia-lhes, eles diziam que eu vendia barato e que era um cota fixe. Quer dizer, vendia a toda a gente, não dizia que não a ninguém que lá fosse comprar e havia gente de todas as idades e classes, não faz ideia, respondeu mastigando em seco.
Mas eu fazia ideia. Respondia-me com verdade a tudo o que lhe perguntava, conforme corroboravam os seus olhos largos e cansados. Quase como se não houvesse culpa, quase como se não estivesse a fazer nada de mal. Apesar de saber que se tratava de uma actividade ilícita, de certa forma, não possuía uma verdadeira consciência da ilicitude dos actos que perpetrava havia anos.
O dia finou-se rapidamente. Estava de novo sozinho em casa e o raio do homem não me saía da cabeça. Ainda pensei em telefonar à Maria, o esquema que na altura me entretinha os tomates, mas nem para me masturbar tinha vontade. Estendi-me em cima da carpete da sala, castanha e de uma rugosidade excessiva, amontoada de pó, a Svetlana já não aparecia há umas semanas não sei porquê, e fumei um marlboro, enquanto partia e trincava línguas de gato que a minha mãe tinha comprado, agora caídas e espalhadas ao meu lado, e pensava no pecado que cunhava o traficante, com os olhos vazios a boiarem pelo tecto, tentando interpretar o puzzle criado por uma aranha enorme e anoréctica que cavalgava pelo branco enferrujado de uma mancha oblonga. Havia discos espalhados pela zona perto da aparelhagem, conseguia ver a banana warholiana do álbum dos Velvet Underground e mais dois ou três discos de blues de uns americanos quaisquer, mineiros acho, que tinha andado a ouvir nos últimos dias. O gira-discos que tinha comprado na feira da ladra uns meses antes continuava a trabalhar, contra todas as expectativas, e ia tocando um antigo disco de jazz, furtado ao meu tio de Alvalade, Coltrane, que me ajudava a meditar e acalmava-me. Este caso lembrou-me os bons tempos de festivais de verão, Sudoeste e Paredes de Coura, agora extintos pelo respeito à ancestral deontologia da moral jurídica, onde todos fumavam tudo o que houvesse, de erva a eucalipto, passando por coca até mesmo tendas, bebiam até os olhos cerrarem de bebedeira e as pernas tremelicarem com o peso da cevada que carregavam na pança, lanchavam bolos ou iogurtes de ganza comprados a chungas moribundos que por lá andavam, em trabalho, espojados pela terraria ou mesmo preparados em família nas tendinhas dispostas erraticamente por entre eucaliptos e calhaus, entre dezenas de outros produtos alucinogénicos que estimulavam a festa e tornavam os concertos de merda em espectáculos de uma vida. Eu próprio fumei droga que se calhar foi vendida por este tipo. As boas lembranças de verões de loucura e morte cerebral, encadilhadas com todas as interrogações que este caso me provocava, foram-me embalando até acordar por volta das 5h30 deitado ainda na carpete ruça já, que tinha vindo da casa dos meus pais, e me aquecia por entre os nacos de pó e ninhos de ácaros que por lá habitavam. Fui dormir.
Acordei sobressaltado,
- Foda-se, já são 8h30, levantei-me e vesti-me rapidamente e saí a correr sem sequer beber café, nem comer a habitual sandes de fiambre do talho da Helena perneta, salgadinha com manteiga mimosa, com que me deliciava todas as manhãs. Já estava atrasado para a audiência final do julgamento do traficantezinho e, ainda por cima, apanhei um trânsito fodidamente entravado, o que mexeu ainda mais com o meu humor matinal de trabalhador do serviço de finanças.
A sala estava apinhada de gentalha com os nervos a crepitar à flor da pele, tudo sentado à espera do meritíssimo, eu, ainda ontem uma criança a enfrascar-me que nem um alarve na Universidade, venerado na maioria das tascas e bares lisboetas e coimbrãs, hoje um respeitado e promissor jovem juiz, judge dread para os amigos mais próximos, que fazia a acostumada justiça pelos juízos criminais de Lisboa. Entrei na sala e todos se levantaram, de um salto sonoro, das cadeiras por reverência à minha negrinha imagem, vestida de beca, que eu próprio satirizo com um,
- Podem-se sentar, por favor.
- A audiência final, relativa ao Processo n.º 313/2008, vai prosseguir, entoei reverencialmente.
A multidão que invadiu o tribunal, deixando a sala a transbordar de povinho, que não sabia sequer o que ali fazia - será que o caso passou na TVI e eu não me apercebi, pensei -, ainda vociferou uns “assassino” e “queres matar-nos as crianças, bandido”,
- Ordem no Tribunal, resmungou alto a madeira do martelo que bateu várias vezes até que a desordem acalmasse e se calasse. A sala ficou à pinha, como poucas vezes tinha visto em dois anos de juízos criminais, tornando-se num espectáculo hollywoodesco, o que me aumentou a nervoseira que já dificilmente conseguia disfarçar e que fui tentando dramaturgicamente dissimular.
E assim foi, o julgamento continuou, devorando tempo, por entre as vazias alegações num português de cachupa do Procurador do Ministério Público, um tipo preto e vão, e as dissertações sobre a moral de um advogado de acusação atarracado e de sorriso sarcástico, que vestia um minúsculo fato italiano da colecção passada e uivava com as suas mãozinhas de pardal em riste como se a razão e a moral em si residissem, movimentos que os meus olhos foram aquilatando lentamente. Na hora de decidir, apesar de não possuir quaisquer dúvidas sobre a subsunção dos actos do traficantezeco ao crime de tráfico de estupefacientes, que o meu código riscado e amarelejado, por entre as milhentas glosas que as noites e noites perdidas de estudo, me confirmava, numa antinomia quase visceral, perdia todas as certezas, porque moralmente, e mesmo em termos abstractos considerando o caso concreto do homem, a minha razão, bem lá no fundo, dizia-me outra coisa. Fiquei confusamente afectado e sem saber muito bem o que fazer.
- Diga-me, como se apresenta perante este Tribunal?
- Culpado, senhor juiz, respondeu-me envergonhado.
- Tem alguma coisa a acrescentar em sua defesa?
- Senhor juiz, eu queria novamente pedir desculpa e dizer que estou arrependido, mas nem sequer ganhava dinheiro com isto, ganhava apenas o suficiente para pagar as contas e para comprar para consumir, era a única coisa que ainda me ia acalmando as dores e os tumores que me comem a carne, aos poucos, todos os dias, e olhe que tomei dezenas e dezenas de medicamentos e tratamentos que os médicos me foram prescrevendo, embora nenhum deles me aliviasse o sofrimento, ainda pensei em atirar-me da 25 de Abril...
- Eu sei que isto não é vida senhor juiz, mas também não ando por aí a matar ninguém ou a roubar e o senhor juiz até me deve perceber, na sua juventude também deve ter fumado uns charutinhos e, no entanto, está aqui, e bem, enquanto digno representante da justiça e do país.
- Ordem no tribunal, o martelo voltou a cascar na mesa raivosamente,
- Mas o senhor está a insinuar que eu também consumo droga, para se tentar justificar?! No interior, a confusão tomava-me – sim, fumei e não foi pouco e, de vez em quando, quando em festa, ainda atiro umas golfadas de fumo folgazão para a garganta e travo em troca da calmaria que me consome de seguida. Até espampanantes e coloridas aves pré-históricas, há muito extintas, eu vi, e irmãos há muito perdidos encontrei, e codornizes gigantes e fugidias, que comigo gozavam, persegui por bairros anónimos…
- Ainda que isso fosse verdade, que não é, não lhe parece essa uma má desculpa para prosseguir uma actividade que é proibida e punida legalmente como bem sabe? Perguntei-lhe altivamente impelido pelos esticados braços que se encavalitavam na mesa que nos separava, embora, por dentro, estivesse pouco ou nada convicto daquilo que asseverava.
O homem semicerrou os olhos e fitou o chão obliquamente como que assentindo aquilo que a moralista justiça lhe tinha acabado de questionar. O meu hemisfério direito, e o esquerdo também, não parava de demandar sobre até onde deverá ir a mão estadual penalizadora na protecção da nossa vida e saúde? Onde reside então a liberdade individual de cada um? Foda-se, mas será que isto faz algum sentido?
A sessão acabou e o homem foi levado em braços até à sua cela por dois polícias com um ar aparvalhado, um gordo, baixo e rosado e um alto, de cara suja e voz intermitente, ambos de grave sorriso na cara pela justiça e lei cumpridas e pelo honorífico serviço que estavam a prestar à sociedade, por entre o cagaçal que a multidão que me havia invadido o Tribunal ia fazendo, que o despejaram na solidão da treva de um pequeno cubículo escuro e sebento, apartador dos males da vida.
A sentença foi lida uns tempos depois, oito anos de prisão que afastaram o pobre coitado da luz do dia, ameaça da sociedade, das ruas e das famílias, pelo crime de tráfico de drogas leves. Eu, pouco tempo depois, em Setembro, causticado com o maniqueísmo que conheci na lei, e depois de perder a Certeza, concorri para os tribunais administrativos.
Sem comentários:
Enviar um comentário
ehhhhhh