quarta-feira, 6 de abril de 2011

21h30

Sendo onde desperdiço tanto tempo, o tempo aqui até que me parece mais lento. É mais viscoso e desenrola-se num murmúrio. Uma ressonância mole que exala das paredes, movida pelo gerador da iluminação baixa.
Não venho aqui pelo chá, nem pelo café, que tenho em casa. Não venho pelo cigarro que fumo numa lentidão de princípio de tempos. O pouco que por vezes aqui petisco também não é culinária que tirasse alguém de casa com a chuva fina e nova que cai, a empurrar os casais para o sofá e a prender os gatos em beirados de janelas. Não é pela companhia de conversa que não apareceu. Não é pela música de fundo, que está tão no fundo que nem se lhe vê o brilho, apenas roça a medo no cone das colunas, um crispar débil de qualquer coisa sonora. Em suma não venho aqui pelo que aqui poderia haver, porque tudo o que aqui há posso tê-lo ou construí-lo noutro lado, talvez até com uma forma mais própria, um casaco de alfaiate e não esta calça de pronto-a-vestir.
Venho aqui porque aqui construo uma nova solidão. Uma solidão com brilho de colheres de café a reflectirem uma luz amarela e densa que banha tudo num nevoeiro de preguiça triunfal. Uma solidão que namora o barulho quase marítimo das conversas intercaladas pelo gelo a rodar nos copos, da máquina a registar mais uma sandes de carne assada, porque aqui não se pode pedir comida complicada.
Venho aqui porque trago esta solidão a passear, é o meu cão que precisa de cheirar tudo o que cheirou ontem outra vez, mas sempre com um abanar de cauda frenético como se este fosse o dia da criação de todos os cheiros, um génesis olfactivo.
Venho aqui porque me perco entre o imiscuir-me nas conversas de um casal soturno e o tilintar da colher a mexer o café, tudo interrompido pelo vapor da máquina a aquecer um cappucino muito falsificado, quase meia de leite. E porque este queimar de minutos a ler um jornal qualquer, mesmo que da semana passada, me banha a alma de uma qualquer coisa domingueira e aprazível. É um sol portátil reanimado por pilhas de dormência, lento mas quente e que me faz sentir pequeno e protegido.
Não venho aqui por estar à espera de companhia, porque essa não vai aparecer. Sento-me nestas cadeiras porque é um sítio em que a solidão me faz companhia. Porque tenho todo um espectáculo de cor e luz, que me dá aquele ultimo aconchego antes de ir pôr o corpo a dormir.
Sento-me com urgência, porque todo o tempo é pouco, quando o quero ver bem desperdiçado. E tenho vindo a apurar essa preguiça, com maneirismos e rituais próprios duma nova religião, libertadora e sonâmbula. Primeiro sento o corpo na mesa em que me pareça existir a cadeira que me vai prender por mais tempo. Tiro cachecol e casaco, e lambuzo os olhos pela sala, mirando pontos infinitos mas sorvendo todos os personagens e mobiliários. O décor é conhecido, os actores também são sempre muito familiares, e isso é reconfortante.
Venho aqui porque venero este templo de inutilidade, onde posso simplesmente largar-me a não fazer nada. E não é fácil, acreditem. A arte do apenas não-fazer é coisa muito difícil para o comum dos mortais, e nem sempre é atingível. Requer manhas de animal doméstico, requer treino de atleta, meditação de budista, ausente num nirvana de estar entretido só com o cintilar do fumo do tabaco na luz difusa dos candeeiros demodé do café.
O pedido é feito ao empregado com requintes de novidade, uma coisa que preciso mesmo, agora, impreterível, desejo de grávida. Mas tanto eu como ele sabemos que não passa do mesmo café que pedi ontem e antes de ontem, e por aí fora. Um ciclo que se repete num ritual nocturno, religião pagã de deus líquido. É sempre o mesmo café, o mesmo copo de água e o mesmo cinzeiro. Ele, tal como eu ao pedir, ouve o pedido com uma delicadeza de primeira vez – acho que percebe o ritual e desconfio que lhe apraz fazer parte dele. Ele sente que encarna o cálice da eucaristia, mas com avental preto e camisa branca.
Espero sempre que o café arrefeça um pouco, nem tanto pelo calor do líquido mas para poder apreciar o vapor perfumado que emana da chávena. É um complemento gratuito que não dispenso, um luxo de pormenor que completa toda esta dança de tiques. Não preciso de açúcar no expresso, aliás quase que não ponho nenhum, mas acabo sempre por abanar o pacote até empurrar os minúsculos cristais para o fundo do rectângulo de papel e abro a goela do invólucro até meio caminho. Despejo uma quantidade insignificante de sacarose na chávena e prontamente puxo da colher, minúscula e cintilante, que enfio nessa seiva castanha que anima o mundo. Mexo, remexo, canso o líquido com o remoinho até eu próprio me fartar. Só agora é que o posso beber. Só agora é que o café está pronto a entrar neste corpo empreguiçado. E bebo-o. Bebo-o devagar mas com afinco, num saborear lento e calculado.
Qualquer apreciador de café sabe que o sabor muda conforme a geografia do tempo e do espaço. Este café não tem o mesmo sabor daquele que tomo meio à pressa no quiosque perto do trabalho. Esse sim, com uma função específica e absolutamente necessária: animar o tecido adiposo, nervoso, muscular, esquelético, para mais uma estafeta. E esse não me vai chegar. Sou muito amigo da cafeína. Ela compreende-me, e eu bebo-a com gosto.
O café da manhã, arrancado a custo das goelas metálicas duma máquina que não é relíquia de museu por questões meramente empresariais, sabe-me a cidade que acorda e que boceja, e que responde devagar aos bons dias, num esforço hercúleo duma humanidade sonolenta. Tem aquele som de sino da escola, coisa que vai começar, sequência de abertura de talk-show televisivo, tiro de partida. E empurra, a mim e aos outros que se acotovelam á volta do quiosque, para essa corrida com meta que foge e que quando acaba já tem promessa de voltar amanhã – a menos que amanhã seja domingo.
Este que arrefece à minha frente tem o sabor de todo um mundo diferente. Sabe a preguiça, a jornal por ler, a discussão lenta e fácil sobre uma arte qualquer, a urbe que se quer manter acordada para apreciar o cintilar de candeeiros. Sabe a conversa mole, a tempo que é sempre pouco para ser desperdiçado com gosto. Tem som de jazz preguiçoso, tocado por pretos gordos e afáveis, de dedos imensos e cilíndricos, despreocupados com as ganâncias do mundo e as politicas dos políticos. Tem aura de rua estreita e sinuosa banhada por um só candeeiro de luz amarelada e movediça. Tem cor de coisa eternamente vaga mas sábia, de domingo tardio.
Café bebido. Ensaio um ar de enfado em roda e puxo do cigarro. O último do maço – vou ter uma oportunidade de me fazer passear pelo espaço que une a minha mesa à máquina de venda automática: uma caixa metálica feia, colorida, desenquadrada do meio, encostada num canto pouco luminoso, para não atrapalhar o resto da encenação de conforto.
Enquanto queimo o cilindro para dentro de mim, vou pensando em coisas miúdas: mercearia, comida, o dinheiro que ainda falta gastar, aquele par de ténis que ando a prometer a mim próprio comprar há um século de semanas, as mamas da vizinha, o vizinho do lado e a sua estereofonia de alta capacidade sonora, os anos do meu pai que se aproximam, a picadela de mosquito que me anda a coçar a orelha, o enigma resmungado que o patrão soltou esta manhã, a sandes de atum que caiu mal e que parece ter decidido ficar mesmo pelo esófago e da lá não sair… Mas sei que é uma maneira de fugir às outras coisas, aos outros pensamentos. O truque é manter as coisas miúdas acessas antes de chegar ao filtro.
Neste templo de inutilidade não sou o único a orar a esse deus fumarento da inércia por vontade própria. Várias mesas enchem-se de solitários, casais, trios, quartetos, e mais raramente até sextetos, de fumantes, amantes, amadores e voyeurs, amantes da realidade alheia, parasitas do nada – como eu. Sentam-se em grupos, e mesmo quando sozinhos fazem parelha com o movimento dessincronizado dos bailarinos que transportam cafés e águas com gás. Encetam conversas repetidas e imitam-se num ritual de confortável mímica social. E eu partilho com eles este éter viscoso de nadas somados – não é maravilhoso? Não é estrondoso o murmurar cúmplice de todos eles somado ao meu auscultar? Não somos nós uma família unida em torno daquela mosca que enamora sem pressa o vidro que protege os bolos? Acho que sim, acho que isto são fatias de uma felicidade amorfa e doce como um martini bebido a goles de pintainho enquanto se espera que o tempo desenrole.
E quando estou quase a cair no limbo da hipnose, no nirvana do quase não estar nem aqui nem em lado nenhum, relembro-me que um outro café me espera: o da manhã. Um íman que nos puxa para a a outra rotina, a que me esforço por esquecer, por ser maior que esta, por ser obrigada e não escolhida.
Bem… vou para casa. Amanhã há mais.