quinta-feira, 31 de março de 2011

O combate

Era notória a sua ânsia de chegar ao Lírio, de voltar a encharcar o estômago de cerveja, de álcool, por entre o fumo que o seguia entrelaçado pelas mãos trémulas e amareladas. Desceu as escadas apoiado na mão esquerda que percorreu o corrimão de um vermelho vazio e masturbatoriamente gasto, e atravessou a porta de vidro,
- “António, uma imperial”, balbuciou ainda nervoso.
O lugar junto ao balcão, adquirido por um etílico usucapião, figura esquecida pelos juristas, mas importantíssima nas tabernas, espumava já pelo seu odor.
- “O Jorginho já cá esteve?”, perguntou.
- “Epá, o que é que queres Gastão, não vês que estou a trabalhar?!”, respondeu-lhe o António, num vociferar carrancudo.
- “Vá lá Banderas, não sejas assim, serve-me outra”, e iam deslizando pela garganta funda e sedenta, provinda da parte da sua mãe. O tempo media-se em imperiais, copos cheios e vazios, beatas empilhadas, cinza espalhada pela mesa e pelo chão, e fumo, tudo calibrado pelo olhar esgazeado da razão perdida algures pelo tempo passado.
- “Hoje tenho de festejar, Manel, acabei o segundo capítulo do meu terceiro romance”, disse ao Manel, que o olhava fixamente de sorriso avermelhado na cara.
- “Então sai um beirão para os dois, Gastão”, disse o Manel, já de olhos brilhantes.
Um sabor frio e viscoso escorregou-lhe goela abaixo, como se podia provar pelas veias salientes que naquele momento latejaram de felicidade. O cabelo, de um baço escuro, escondia a congénita tristeza de um miúdo cerceado de infância. Os traços gastos, destruídos, amparavam-lhe os olhos cavados de alma. Não destoava a roupa, uma camisa de um azul clarinho, especialmente clarinho do uso e lavagens excessivos, um blusão de cabedal perdido no tempo e escuro, sujo também, umas calças de ganga, levi’s, rotas em vários sítios, gastas, e uns sapatos de vela castanhos, abertos já.
Avançou num silêncio sóbrio para a porta de vidro e sacou de um maço de tabaco, Marlboro, puxando um cigarro e levando-o nervosamente na ponta dos dedos tremeluzentes até à boca. Depois, viu-se a calmaria do fumo a esvair-se por entre os lábios, por entre os dentes podres e pretos, por entre os pulmões,
- “Arranja aí um cigarro”, pediu-lhe o António aparecido do nada, assustando-o ligeiramente.
- “Toma Banderas”, esticando o maço meio vazio e amarrotado.
- “Traz-me aí outra imperial, António”, pediu-lhe já mais desenvoltamente, após três ou quatro copos que rapidamente se vazaram, perdendo-se no dourado corrente da imperial que ficou a borbulhar gelada.
O tempo passou, fez-se noite, eram já umas dez horas,
“Banderas, traz-me outra”, pediu mais uma vez e os pensamentos esparsos iam-lhe confundindo o discernimento,
- “Gosto do Sócrates, Manel, percebes?!”, afirmou após o tipo gritar em plena Assembleia da República – no telejornal da RTP 1 – que Portugal estava no bom caminho,
- “Ó Gastão e o teu aluno?”, perguntou o Manel mastigado por uma forte rubescência cutânea, enquanto o António se ria,
- “Não tens mão nele, pá”, atirou e entornou um copo de vinho tinto num lento segundo que lhe mascarou, por uns segundos, a vermelhidão em roxidão, se é que a palavra existe.
Dirigiram-se todos para a porta do café, distribuindo depois o Gastão cigarros pelos dois, enquanto o Manel cerrava os punhos e abanava-se desengonçadamente simulando um jab de esquerda,
- “Gastão, olha quem ‘tá a chegar…”, disse, por entre algum cuspo projectado inintencionalmente.
Desci as escadas, abordado imediatamente pelo olhar vazio do Gastão,
- “Jorgiiiinho”, urrou tribalmente quase assobiando por entre os espaços dos dentes perdidos.
Sorri e apertei a mão a todos enquanto entrávamos e já ao balcão pedi um café. Era quinta-feira e, num instinto pavloviano, fui até ao Lírio. Estava ao balcão e reparei numa tipa estranha e concentrada, já quarentona, que acabava de jantar por entre a confusão de guardanapos, azeite, vinho, talheres e pão. Comia mecanicamente e a sua face encapelada de tristeza e sedativos, provava os desgostos amorosos que a mataram. Agora, não passava de um fantasma que se ia arrastando pelo limbo e pelo Lírio.
- “Então Gastão, já estás perdidíssimo?!”, afirmei num tom provocatório de reprovação.
“Já acabaste o segundo romance?”, perguntei-lhe jocosamente mas, ao mesmo tempo, sério.
- “Sim Jorge, vai ser publicado e tu, quando é que ‘abres o livro’?”, disse enquanto me olhava de soslaio e se movia para a frente e para trás de uma forma nervosa e autista.
- “Quando é que perdes o medo?”, disse-me agora num tom mais à vontade de bêbado, sem medos, ainda que as mãos de Parkinson lhe fizessem os compridos copos de imperial planar, acabando entretanto mais uma tulipa.
Enquanto o meu cotovelo esquerdo se apoiava no balcão transparente, que guardava os sólidos bolos do dia anterior, agarrei a colher com a ponta dos dedos e fui mexendo vagarosamente o café, perdendo-me pelo que tinha feito em mais um dia que acabava de passar e pelo que queria fazer na vida. Na verdade, aqueles “quando é que perdes o medo” afectavam-me e afectavam-me brutalmente, abalando sempre e sempre a vida que o passar dos dias ia procurando soldar.
- “Pessoal, vou-me embora, amanhã trabalha-se…”, disse e dirigi-me para a porta,
- “Espera Jorge, espera”, disse o Gastão seguindo-me, quase tombando uma cadeira que se lhe atravessou à gravidade, por esta altura irremediavelmente reduzida.
- “Não posso, Gastão, sabes como é, quem trabalha…”, disse para o picar,
- “Eh Jorge, também não era preciso descer tão baixo”, afirmou num tom meio rouco e comprometido,
- “Tens é de abrir o livro, de perder o medo”,
- “Não sejas cobarde, Jorge”, disse enquanto eu me ia afastando e desaparecia no negro da noite que reluzia nas árvores indolentes.
- “Não tens mão no teu aluno, Gastão”, disse-lhe o António a meio de um cigarro que lhe escondia o sorriso aberto a meio.
Voltou algum silêncio por uns minutos, intervalados por repetitivos,
- “António, tira-me mais uma imperial!”.
A multiplicação dos copos ia pautando o tempo, estendendo e desmantelando-o em milhares de átomos mescalinos, que crepitavam no topo dos copos que lhe iam cortando a respiração e dilatando as pupilas.
- “Vá Gastão, tenho de fechar, ‘tou farto de te aturar…”, retrucou o António enquanto praticamente o expulsava do café, já completamente gradeado.
O táxi atravessou rapidamente a Avenida da República até à rotunda do Marquês de Pombal, por entre duas ou três palavras trocadas com o taxista que se mostrava algo desconfiado, talvez com medo que o Gastão lhe vomitasse a merda do mercedes.
Embrenhou-se no bairro que, embora não estivesse cheio, até nem estava mau, ainda que estivesse composto principalmente por miúdos bêbados e histéricos que iam ganindo e mijando e vomitando as ruas.
Ao cruzar-se com um grupo de miúdas bem mais novas que ele, meteu-se com uma delas, morena, com o cabelo atado e preso por uns ganchos, que devia ter uns vinte anos. Era alta e tinha umas sandálias brilhantes, galou-lhe torcidamente o rabo e as mamas – movia-se despudoradamente nua e claramente sem o consentimento materno ou paterno –, e ouviu um,
- “Vai pró caralho, velho nojento”, num latido estridente, suportado pelo olhar altivo das amigas, meio betas acho, que lhes mascarava pimpinhamente as faces barrentas.
Que puta de miúda, queria-me, é claro que ela me queria, pensou…continuou e seguiu rua acima, até um bar qualquer onde costumava ir, nunca me lembro do nome, mas um bar onde costumam ir muitas gajas, principalmente as bifas, normalmente fáceis. O bar ficava na zona mais alta do bairro alto e a bebida era relativamente barata – as imperiais custavam um euro e os shots custavam um e meio – e a empregada pagava-lhe, de vez em quando, umas bebidas, provavelmente por piedade.
Sentou-se a meio do balcão e pediu,
“Uma imperial, se faz favor”, as palavras saíam já de uma forma arrastada, talvez pelo pesado hálito que as parecia agarrar.
A solidão é incerta e é esmagadora, é verdade, mas fica sempre dependente da bebida que se ingere. Bebeu umas dez imperiais e dois shots de tequilla, de acordo com o que sei, e meteu conversa com uma espanhola que se sentou ao seu lado. Estava tão bêbeda quanto ele e ia balbuciando umas palavras a espaços, de onde conseguiu apenas perceber que era de Múrcia e estava a fazer erasmus em Portugal. Na altura, ficou com a ideia de que até era gira, média estatura, de um moreno altivo que lhe escorria pelos longos cabelos pretos, porém, no dia seguinte, ao relembrar a noite, apercebeu-se de que era um bocado gorda e não tão gira quanto lhe havia parecido, para além de estar excessivamente pintada.
Saíram já de mãos dadas, após uns beijos meio enxertados de tequilla, e foram descendo o bairro, a rua das flores, até – a noção temporal havia desaparecido nesta altura, era como se as horas tivessem sido comprimidas a martelo – a fila para o Jamaica estar já no final. Entraram facilmente, como se uma conspiração cósmica estivesse do seu lado – o escritor falhado – e o tempo fundiu-se com o som, com as cervejas e com os whiskies que iam saindo das mãos dos empregados do Jamaica. A mesma música de todas as noites tocava, corriam mãos por todos lados, a roupa encurtava à medida que o álcool descia, beijos e palavras vazias eram trocados, ouviam-se até urros e sentia-se, principalmente, felicidade e vazio. Ao voltar da casa de banho, onde havia conseguido chegar com dificuldade, a espanhola estava já com as mãos enterradas nas calças de outro tipo qualquer, carregado de gel na cabeça e vestido para engatar qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, no caso a espanhola afinal repulsiva e de beijo fácil e cuja propriedade se caracterizava por uma tremenda volatilidade alcoólica. As luzes intermitentes que os cobriam dançavam sob o corpo morto e pesado da espanhola, que se perdia na boca e nas mãos do tipo anónimo, que pela aparência gostaria, certamente, de ser um Cristiano Ronaldo.
Restava, nesta altura, de um lado, uma felicidade falaciosa e, de outro, o travo da auto-comiseração conjunta de quem não conseguiu acabar a noite acompanhado, o que trespassava que nem punhais os corpos cabisbaixos. Andava à roda, as mãos estavam sujas e pegajosas da cerveja e do whisky que ia vertendo, até que perdeu completamente a noção do tempo e do espaço. As pessoas não passavam de um mosto de sombras que sorria e suava – devo referir novamente que ele estava extremamente feliz, como se tivesse conhecido a mulher de uma vida, a espanhola de uma noite, que afinal preferia sair do Jamaica até um quarto qualquer com o bronco do cinto de brilhantes da Dolce & Gabbana –, até que uns braços enormes o laçaram e pontapearam,
- “Vão pró caralho, palhaços”, gritou, após ter sido expulso sabe-se lá porquê, de uma forma quase imperceptível para os atrasados dos seguranças que iam sorrindo que nem hienas histéricas, mas sempre de olhar ameaçador, legitimado pelo poderzinho em que tinham sido investidos pelo dono de mais um barzinho do cais do sodré.
Meteu-se num táxi, meio em andamento, e sem saber bem como um preto entrou também e pediu-lhe para dividirem o táxi,
- “Sócio, seguimos aqui na boa os dois, para onde vais?”, vozeou, numa ladainha cantada de moamba, o fifty cent das galinheiras. Disse-lhe que ia para a quinta do lambert e que não havia stress,
- “Meu, gosto de ti, és um gajo directo e sem merdas, fruto destes políticos”, disse-lhe perante o olhar de gozo do taxista que, ainda que estivesse com algum medo de que não lhe pagassem a viagem, ia-se divertindo com a amizade do casal de bêbados.
O taxista deixou-os algures no campo grande, talvez os tenha expulsado, o gajo também tinha um ar de trolha filho-da-puta, e o Gastão convenceu o caracol – ao que parece este era mesmo o nome do tipo, já que se apresentava como o caracol da night – a ir até ao Lírio beber um copo antes de ir para casa. Deviam ser já umas sete da manhã de sexta e, pelo caminho, foram-se cruzando com imensa gente carrancuda, quase sonâmbula, que corria para os seus trabalhinhos, uns executivos, outros apenas de merda, até que entraram no Lírio,
- “Manel tira aí umas imperiais para mim e para o meu amigo”, pediu imponentemente, porque um gajo, especialmente quando está bêbado, tem de se impor.
- “Ó Manel orienta aí as imperiais aqui pró caracol da night, o novo amigo do Gastão”, entoou o aprendiz de rapper.
O tipo não tinha propriamente bom aspecto. Devia ter um metro e setenta e cinco, era magro, mas entroncado, tinha o cabelo rapado, ainda que com umas merdas desenhadas ao pormenor no lado esquerdo da nuca, tinha vários brincos de ouro e vestia-se como se viesse do Bronx, pelo menos era o que o gajo provavelmente pensava.
- “Ó Gastão desculpa lá mas a esta hora não sirvo álcool a ninguém, tens de ir a outro sítio se quiseres”, afirmou o Manel claramente a mandá-los embora.
Seguiram aos abraços, como se fossem os melhores amigos, perante o erguer do sol e da luz, até que o Gastão deu um leve soco no ombro do caracol, que levou a mal – o que é normal já que no bairro dele ninguém lhe toca e sai impune – e respondeu com um empurrão, devolvido imediatamente.
No seguimento de mais uns empurrões e de um ‘vai-te foder, meu grande filho da puta’, voou um gancho de direita que, planando pelo espaço, acertou em cheio na parte inferior da face esquerda do Gastão que foi imediatamente projectado, por entre algum cuspo e sangue, para o chão. O tipo correu e, já em cima do Gastão que respirava asperamente, soqueou-o por várias vezes ao mesmo tempo que se desembaraçava dos cotovelos que iam esperneando inconsequentemente e ouviram-se mais alguns esganiçados
- “Filho da puta, parto-te todo”, de um toque de ódio sereno. Multiplicavam-se os enviesados esguichos de sangue escuro, que viriam a provar os hematomas que se ergueram horas depois, e que salpicavam os dois corpos entrelaçados.
Após o mitra ter fugido cobardemente, porque se a luta se tivesse prolongado certamente o tipo teria acabado coberto de porrada – palavras proferidas mais tarde pelo lutador vencido –, o Gastão levantou-se, com a cara toda amassada – o olho direito estava inchado e vermelho e o lábio inferior traçado a sangrar virginalmente –, e foi para casa, fazendo-se acompanhar pelo amanhecer e esmurrado pela solidão da brisa matinal que balançava os ramos das árvores inquietas, dormir e acordar mais uma vez.