quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ninguém me sabia de volta

Ninguém me sabia de volta. Escondia-me pelas baixas divisões obscuras da velha casa onde me aprisionavam, numa profunda solidão subterrânea, cuja violência intrínseca me ia fundindo com o escuro. Ia vivendo pouco aos poucos, porque o tempo tinha-o perdido. A comida já não sabia a nada, era como se me tivessem arrancado a língua, o estômago era náusea o dia inteiro, vómitos de um vermelho barrento, escuro, o interior das coisas enojava-me. Nem sequer há música nesta história. Eles, em tempos meus pais, já nem nos olhos me olhavam, já nem sequer me olhavam, não passava de um fantasma que lhes infectava a realidade, como se já estivesse morto e enterrado.

Deixei de falar, preferia não o fazer, até porque não tinha nada mais para dizer. Havia passado mais de quatro meses e esbatiam-se as diferenças entre a minha figura e um animal, não passava de um animal. Um animal doente de quem os humanos tinham medo e nojo, inexistindo quaisquer razões misteriosas para tal. Despojei-me de sentimentos e olhava simplesmente em redor. Grande parte do tempo ficava pelo quarto, encarcerado no indistinto, no medo.

Um dia ouvi alguém chegar, a voz era-me familiar, mas tinha alguma dificuldade em perceber quem poderia ser, a realidade e o sonho entrecruzavam-se cada vez com mais facilidade na minha cabeça, corri para a divisão inferior, a dos animais, e calei-me, baixo, enquanto os passos e a voz que conhecia se moviam no tecto que me apertava o tórax e vergava a carne. Parece o João, pensei. Há mais de três anos que não o vejo, o meu primo, uma das três ou quatro pessoas que nunca me julgou por ser diferente e por almejar algo superior, que até me incentivou a procurar e tentar aquilo que os meus olhos viam a mais.

Despedia-me eu por entre a censura de quase todos, o meu irmão e o meu pai que nem sequer tinham vindo, e um abraço sentido dele e da Manuela, sua irmã, lágrimas e promessas de visitas, o comboio rumorejava e cuspia fumo num equilíbrio supremo que pintava o céu de preto, e eu partia para Paris, na busca de outros como eu, na busca do desconhecido, de sentir a arte, labirintos de júbilo, de me tornar escritor, o que quer que isso fosse. Não tinha grande coisa, apenas uns trinta contos de ilusões e amargura juvenil.

A casa era velha e o chão, de madeira negra e cancerosa, gania a cada passo que dava. Não aguentei e corri para a casa de banho para limpar a cara numa daquelas toalhas encardidas e ásperas que me fodiam a pele. Saía eu da casa de banho e ouvi alguém descer as escadas a correr, não tendo sequer tempo de me esconder como me havia sido ordenado,

- Miguel?! Disse o João de olhos abertíssimos como se tivesse visto um fantasma.

- Então primo, há tanto tempo, exclamei num tom sentido, embora tentasse desconversar sob o olhar colérico da minha mãe.

- Deixaste de escrever, nunca mais soubemos nada de ti, as últimas cartas foram devolvidas…replicou num tom desiludido e triste.

- Pois, mudei de morada e entretanto perdi a vossa e como pensava voltar em breve a Portugal…e depois as reviravoltas com que não contamos e acabei por não escrever mais…retorqui nervosamente.

- Mas estás cá há muito tempo? Perguntou-me pouco convencido daquilo que lhe dizia.

- Cheguei há uns dias, mas tenho estado ocupado com imensas coisas e ainda nem sequer tive oportunidade para estar convosco, mas queria visitá-los mal pudesse, desculpa-me a sério…disse-lhe de olhos humedecidos pela sinceridade, agora estragada, que sempre ostentei.

- Vá, vamos, o Miguel está cansado e depois logo põem a conversa em dia, afirmou a tia nervosa e irritadiça, puxando-me para cima, arrastando-me quase, e despachando-me num ápice…

A caminho de casa, numa concentração interior, fui pensando no quão estranho tinha sido aquele encontro, no quão intrigante foi a reacção da tia quando vi o Miguel, pensamentos que iam fluindo enquanto os meus olhos seguiam os pés que iam comendo ordeiramente o lancil gasto e profundo.

Entrei em casa, embora tenha tido alguma dificuldade em descobrir a lassa fechadura devido às mãos que me tremiam ainda. A minha irmã esperava por mim, li-lhe nos olhos projecções avulsas, ar de quem pensava que vinha bêbado pela dificuldade em abrir a porta e todo o barulho que fiz. Olhou-me desconfiada, e disse-lhe,

- Não vais acreditar em quem encontrei! Não vais acreditar, afirmei tremeluzindo a voz, enquanto limpava o suor que me brotava essencialmente na testa.

- Quem? Perguntou-me denotando também já alguma inquietação.

- O Miguel. O Miguel estava na casa da tia. Voltei a ficar nervoso e deixei cair as chaves que pareciam aranhas a querer fugir pelo chão nérveo e apanhei-as com alguma dificuldade. Por momentos a minha irmã calou-se, não conseguia perceber ao certo no que pensava,

- Mas voltou quando? Como soubeste? Perguntou-me de olhos vidrados e turvos.

- Fui a casa da tia para saber quando é que ela queria que lhe pintasse a sala e os quartos e achei-a algo tensa, ouvi uns barulhos estranhos no andar de baixo e desci instintivamente, dando de caras com o Miguel, que parecia estar escondido ou algo do género, foi muito estranho, não consegui perceber bem.

- Hum, e como é que ele está? Perguntou-me num tom agora preocupado.

- Não sei, mas pareceu-me estranho, estava muito branco e magro, como se estivesse doente, respondi-lhe agora mais calmo.

No dia seguinte, resolvemos ir visitá-lo sem avisar. Na verdade, para além dos laços de sangue que nos uniam, éramos amigos verdadeiros desde crianças. Fomos conversando, e fui perguntando mais algumas coisas ao meu irmão, que me foi descrevendo um pouco mais pormenorizadamente a estranha situação, mencionando agora as grandes olheiras que lhe entrevavam a face e a alguma tristeza que lhe arqueava os lábios, arquivando um abismo de pavor. Num instante, estávamos à porta e com três pancadas fortes e secas que torturaram a madeira da porta nos fiz anunciar. Ninguém vinha abrir e voltei a soquear a porta por mais algum tempo. Passados mais de cinco minutos a tia Isabelinha veio finalmente à porta, hasteando um marcado sorriso amarelo, e num cínico e curvado,

- Então Manuela estás boa, há tanto tempo que não te via.

- Sim, vim com o João ver o Miguel, atirei rapidamente tentando despachá-la, que a custo nos convidou para entrar,

- Pois, mas ele está tão cansado, e agora está deitado, se calhar era melhor virem num outro dia, disse num tom não tão convicto como pretenderia.

- Certamente ele ficará feliz por nos ver, e desci agarrando o meu irmão e ignorando o olhar furioso da tia Isabelinha.

Ao descermos as escadas o escuro aumentava, como se nos aproximássemos da treva, um escuro denso e avermelhado, desordenadamente abstracto. Batemos à porta do quarto onde o Miguel estava enclausurado, que num ápice nos abriu a porta abraçando-me chorando.

Conversámos os três por longas horas, e foi-nos contando histórias e histórias de Paris sob os nossos olhos atentos e felizes, enquanto reparava na frágil figura que mostrava, que o meu irmão já me tinha descrito, a magreza tisnada de uma branquidão doente, tiques constantes e nervosos que ora coçavam o cabelo sem brilho, ora esfregavam o nariz, a perna esquerda que não parava de tremer um segundo,

- Até amanhã Miguel, vamos combinando coisas, e vê se tomas algo e comes bem que estás com um ar doente, disse despedindo-me e desaparecendo sob a luz desfalecida dos postes que ordenadamente marcavam a estrada de volta.

Era noite de sábado e resolvemos sair, eu e mais um casal de alemães, a Hannah e o Jurgen, havia uma festa, diziam óptima, na fabrique rouge, e como conhecíamos os porteiros e a Julie do bar, facilmente entraríamos. Saímos de casa, já condignamente regados, alinearmente e rindo alto pelas ruas sujas e brilhantes da Paris dos anos setenta, a Paris dos sonhos e alucinações de todos os artistas, a Paris de um valor erótico que se deixava comer em troca de um conhaque (a vil ciência), a Paris vulcânica que cantávamos elipticamente e nos guardava terrivelmente os desgostos. Chegámos à enorme fila e, depois de ter pedido a um dos seguranças que chamasse a Julie que nos recebeu com gritinhos histéricos e abraços, rapidamente entramos.

A música estava óptima e continuamos a beber, eu estabeleci-me nos gins tónicos e os alemães no vodka, até que o tempo e o espaço se começaram a confundir, o ar pesado e suado apertava-me a cabeça, e a coca que tínhamos snifado antes de sairmos de casa empurrava-nos para a pista, que tresandava a feromonas, a tesão, e dei por mim numa espiral química a dançar envolto numa corpografia alongada com uma tipa hispânica, despida num vistoso vestido vermelho, que já tinha visto por duas ou três vezes pela Noite, e que me segredava ao ouvido ordinarices em espanhol, enquanto as minhas mãos lhe sentiam descaradamente as ancas e as nádegas e todas as formas imóveis que lhe tremiam.

Acordei, seguíamos aos beijos num táxi a caminho da casa dela pareceu-me, quase nos comendo por ali mesmo, sob os olhares furtivos do taxista atiçado que nos ia espiando pelo retrovisor com a mão esquerda no bolso embora não lhe desse muito jeito. A minha razão era coca e gin naquele momento, a minha razão era a testosterona que cuspia pelos poros que ardiam, obstruídos de suor, de sémen, e saímos do táxi, percorrendo-lhe as minhas mãos todas as partes molhadas do seu curvo e malévolo corpo, enrodilhadas pelo encharcado vestido vermelho cada vez mais curto, sempre manuseado pelos meus longos e sábios dedos. Fomos derrubando portas e móveis e perdendo roupa até que entrámos em casa, libertando o espaço, e depois de lhe arrancar o vestido e já erecto como poucas vezes, bombeando litros de sangue a cada batida cardíaca para o pénis inchado e vermelho, encostei-a a uma parede despida e branca da sala que nem conhecia, de costas voltadas para mim e penetrei-a com força, enquanto a agarrava e cravava as unhas cada vez mais quanto mais a fornicava. Os gemidos aumentavam e sentia torrentes de suor correndo-nos os corpos, fazia um calor tremendo naquela noite, os movimentos aumentaram o ritmo pautados pela sua respiração anelante que me ia ouvindo ofegar ao ouvido e viemo-nos ao mesmo tempo num caudal de líquidos que nos inundou as entranhas e as pernas, alimento brutal, numa explosão de êxtase, de um estranho êxtase ao sentir subir um raio que me consumiu todas as veias, todo o sangue, uma estranha infecção que senti naquele momento, a semente de destruição que me matou naquele preciso momento, devorando-me de dentro para fora, espalhando morosamente o vírus por todos os recantos e recessos do meu corpo, cravando-se em todo o sangue que me jorrava agora morto. O vírus encarnado engoliu-me ali mesmo.