quarta-feira, 22 de abril de 2009

Os periquitos também são felizes

Era uma vez um jovem casal de periquitos feliz da vida, feliz com a vida. Eram ambos novos e bem sucedidos, apregoava a gente e a sociedade. Tinham tudo - uma carreira sólida e em ascensão, uma linda e folgada casa na zona de Cascais, com vista para o mar, comprada pelo sucesso profissional que guardavam num banco espanhol, uma relação que ia de vento em popa navegando existência fora, uma carreira e um projecto para uma vida e várias outras, dois carros topo de gama, um cinzento metalizado e refulgente de quem tem a conta recheada, e outro grande e espaçoso de matrícula estrangeira, era fino na altura, tudo acompanhado da excelente imagem que possuíam no meio, convidados frequentes dos eventos da finória socialité. Resumindo, tinham tudo, mesmo tudo.
Ele era ridiculamente pequeno, era minúsculo, não era um periquito anão, mas poderia ser. Ainda assim, cantava de baixo para cima e de papo cheio que nem um pavarotti de aviário. Ele era importante, mandava nos outros, sabia mais que os outros, gritava com os outros, e tinha uma esposa, ela, que era bela, de certa forma era grande ao contrário do seu módico tamanho. Ela era calada e feliz, tinha tudo para ser feliz, não havia qualquer razão para não ser feliz, estava casada com ele, grandemente bem sucedido. Era bem-parecida, vestia-se de penas de um amarelo garrido e espampanante, que nem o sol e queimava de olhar, e agora também dispendioso, a vida desafogada permitia-o, ainda que se dissipasse na multidão pelo seu perfil altero. Mas era feliz, tinha tudo o que sempre sonhou.
A casa onde viviam, pintada de um branco altivo, cravada no penhasco mais alto que encontraram, que flamejava lá no cimo, a inveja de todos os vizinhos, estava decorada de bibelôs pelas estantes, e outras pequenas peças de arte de um estranho gosto, embora escolhidas a dedo, sofás do IKEA, lustrosamente modernaços aos olhos de muitos, dispostos ordeira e simetricamente, móveis tradicionais de um castanho-escuro e maciço cheio de rebordos trabalhados à mão e outras mariquices que enchiam o espaço despojado da enorme casa ditosa.
Gostavam imenso de animais de estimação, porque a educação assim o ditou, e tinham um casal de humanos, prenda de casamento de uns amigos colegas de trabalho, que vivia numa enorme gaiola, esqueleto oval de finos ferros arqueados que nem varas verdes que encerrava a perspectiva. O casal de humanos, cerceado na grande gaiola branca e dourada, cantava por obrigação, sorria por dever, e queria correr para longe mas não podia, estava prisioneiro naquele cárcere inquietante. Nunca viram o que o horizonte guardava. Arregalando o olhar nas suas órbitas cavadas e impassíveis, perguntavam-se muitas vezes sobre qual o crime que teriam cometido para a prisão perpétua que cumpriam sem sequer terem sido condignamente julgados? Uma vida a olhar para o exterior, de pescoço e olfacto esticados, a conjecturar sobre como seria a vida lá fora, a liberdade de que os franceses se gabam, o mundo.
Um dia a periquita chegou a casa, após um longo dia de trabalho, e disse ao fiel e mínimo esposo,
- Amor, quero ser mãe.
Ele sorriu de felicidade pela fortuna que lhes tinha tocado e decidiu que estava na altura de serem pais. Moralmente tratava-se de um imperativo, sabiam-no, estava escrito num qualquer tratado ancestral de boa família. Se já tinham uma vida perfeita, com um filho tornar-se-iam no casal arquétipo a seguir por todos os outros, panaceia da perfeição social e mestria familiar. Ambas as famílias ficaram radiantes com a notícia e festejaram todos num grandioso almoço de família, e comeram e beberam e gritaram e grunhiram festejando a excelente nova, todos em redor da grande mesa da sala, arfando aos brindes toda a sorte que tinham.
Nessa mesma noite começaram o árduo trabalho da procriação, ele pequeníssimo saltitando numa fornicação algo atamancada por cima dela, que nem um pincher com o cio, feliz, tentando confeccionar um filho, o último passo que restava para alcançar a perfeição e a felicidade autênticas, e ela calada recebendo-o simplesmente, tinha de ser, a felicidade e a perfeição requeriam-no. Passaram meses e nada, a felicidade desmedida era agora menor, pastosamente estranha, tinham dificuldade em se olhar nos olhos, marcaram uma consulta num médico privado, um periquito grande e gordo, com um timbre gritado de gigante rouco, escuro com ar de quem fumava dois ou três maços por dia, que, uns dias depois, acabou por lhes dar a terrível notícia de que o periquito era estéril e não podiam ter filhos. A felicidade foi assolada por uma profunda depressão, o casamento tremeu richteriamente, e tempos de confusão ainda encheram a imaginação da periquita de tormentos, mas um casamento uma vez selado divinamente, é-o até ao caixão, sob pena de pecado espiável mortalmente.
Tempos passaram e resolveram adoptar um periquito bebé, coitadinho, abandonado ou assolado por uma ou outra qualquer maleita social, infeliz, resolvendo, por um lado, o problema que lhes atacava a perfeição enquanto casal modelo e, por outro, permitindo-lhes prosseguir o bem, numa indulgência vertiginal, é que sem gestos destes, altruístas, não vamos para o céu, mesmo que sejamos periquitos dotados de fortes e longas asas que nem águias ou deuses.
O processo foi rápido, conheciam alguém na comissão de acompanhamento das adopções de periquitos, e a felicidade voltou em pleno àquela família, perfeita novamente, o periquito bebé era lindo, de uma penugem tenra e amarelada, piava esguiamente e fazia sorrir todos. O círculo estava completo, aquela vida era agora perfeita, estava acabada. Uma obra-prima tinha sido conseguida. Ele tinha agora trinta anos e ela vinte e seis, eram felizes como muito poucos, tinham essa ventura, porque tinham tudo. Conquistaram tudo aquilo que estava à disposição para conquistar.
O pequeno periquito, saía ao pai na altura, cresceu e esvoaçava pelos corredores encerados e radiantes da casa, numa ambiguidade delicada, o sangue que carregava nas veias não era o que devia, mas não sabia e era feliz e brincava todos os dias com o casal de humanos que ia sobrevivendo penosamente na grande gaiola. Cada vez menos cantavam, cada vez menos se deslocavam do poleiro, e iam fingindo sorrisos e assobios para que a família de periquitos não desconfiasse, por entre tremuras que anunciavam a demência. A gaiola era imensa vista de fora, mas minúscula por dentro, e todos os dias o seu interior os apertava jugularmente cada vez mais, tocando e fazendo estremecer os frágeis ossos dos humanos que a pouco e pouco iam cedendo na razão. O pequeno periquito apercebeu-se da tristeza funda que vivia com o casal de humanos, comentando com os pais, que logo lhe disseram,
- Não sejas parvo, eles têm tudo para ser felizes, vivem numa gaiola enorme, linda, comem do melhor, nunca lhes faltou nada, é impossível não serem felizes. O pequeno periquito sabia que não, leu-lhes nos olhos a melancolia sem fim de uma velha viúva, sabia da dolência que lhes sopeava o espírito.
Planeou um célere plano de libertação do casal de humanos e, nessa mesma noite, depois das onze, já os pais dormiam porque trabalhavam arduamente no dia seguinte, desceu sorrateiramente as escadas patinha ante patinha e aproximou-se da gaiola onde os humanos viviam enclausurados havia anos. Estavam acordados, na verdade pouco dormiam, as crises de ansiedade que os matavam não permitia, fitou-os e, por entre um charco de um silêncio pérfido, viu novamente aquilo que já sabia e, levantando a pequena asa, abriu a porta da gaiola. Eles ficaram estáticos, no vagar da imobilidade do ar, não percebendo o que o pequeno periquito queria deles, que lhes disse,
- Sigam-me. Embora desconfiados seguiram-no, ciciando de uma forma estranha, desconcertada, já nem sabiam andar, dirigindo-se para a porta principal. Chegando à porta disse-lhes que apesar de gostar imenso deles não aguentava vê-los assim tristes como se estivessem mortos, abriu-lhes a porta e desejou-lhes boa sorte e muita felicidade. Os humanos abraçaram-no simultaneamente por entre algumas lágrimas e sorrisos e disseram-lhe,
- És um bom rapaz, e seguiram um pouco perdidos, espantados com as soltas paisagens incógnitas que desconheciam, a liberdade que devoravam com o olhar e agora com todos os sentidos, de uma assentada só, num vórtice de sensações, e seguiram abraçados, felizes, desaparecendo sob a luz da enorme lua que iluminava o relento ensopado num amoníaco que lhes era desconhecido.
No dia seguinte, o casal de periquitos apercebeu-se da fuga e irritados pela perda, mas porque haveriam de fugir quando tinham aqui tudo para ser felizes, pensaram, e acabaram por comprar um novo casal de humanos, ainda mais bonito e chilreador, que voltou a encher a gaiola e a casa.

Memória do meu bisneto

Já não me lembro bem como foi…  os pormenores até que me recordo, mas a totalidade da coisa escapou-se me! É daquele tipo de coisas que nos ultrapassa, que por mais que queiramos, só poderíamos absorver e compreender, no seu todo, se as vivenciasse-mos vezes repetidas, como uma música que se decora a letra de tanto a ouvir.


Eu vinha do trabalho, deveriam ser dezoito e trinta, dezanove, mais não. Eu na altura estava no Segundo Plano que era um sistema de trabalho social para Regenerados de segunda geração, que é o meu caso, já vou na terceira  regeneração. Lá no escritório tinha sido tudo muito calmo, era um dia normalíssimo, sem stress algum. Meti-me no auto e ia na via externa de acesso ao Bairro XLVIII quando aconteceu aquilo. Na altura não compreendi nada do que se estava a passar, e muito, ainda hoje, não compreendo. O céu primeiro iluminou-se dum rosa eléctrico, flamejante, de seguida o auto saiu do controlo automático enfiou-se pela berma da via contra os autoportantes de segurança. A voz do rádio digital simplesmente estava toda baralhada e não dizia coisa com coisa, saltava de servidor em servidor, mudei para rádio analógico enquanto mirava o céu que entretanto tinha ganho um brilho tão forte que deixei de puder manter os olhos abertos. Mas o rádio analógico também não funcionava, apenas emitia um zumbido. O painel do auto estava simplesmente morto. Depois o céu ficou escuro, muito escuro, completamente escuro.

Aos poucos comecei a perceber o que se tinha passado. As notícias que me entretinham durante o jantar já o tinham evidenciado e sentia-se a tensão no ar. Todos os dias surgia uma nova notícia na Janela sobre algo que, tudo somado, só poderia levar a isto.

É impressionante como tudo aconteceu rápido e de certa maneira indolor.

O meu bisavô Guerreiro falava muito da guerras do Iraque, do Kuwait, do Irão e da Mongólia como coisas que demoravam semanas a resolver, mísseis, casas destruídas, refugiados… Aqui não houve tempo para nada disso. Os mortos morreram na hora, os queimados na própria semana e os que sobreviveram correram para debaixo do solo no próprio dia.

Desde esses dias que vivemos dentro da Cúpula. Os que sobreviveram ao Clarão agonizam numa cela com pouco mais de dez quilómetros de diâmetro. A Cúpula é o que resta de uma civilização. O último resquício de uma raça que se achou superior, mas que não soube lidar com um pormenor mesquinho. Uma gaiola, onde tentamos fingir que não estamos condenados. Onde tentamos explicar aos nossos netos o porquê de eles terem que ser pais antes dos cinquenta - ao contrário de nós. E nem nos atrevemos a dizer-lhes que o mais certo é nem isso conseguirem…

Vivemos aqui há quase quarenta anos e sem vislumbre de melhoras… O ar rarefeito, reciclado até à exaustão, a comida plástica no sentido absoluto do termo, as doenças de pele, a água com sabor, e o céu sempre negro. Como deixamos de ter acesso ao mundo exterior, como tudo mudou, incluindo a nossa maneira de viver o que resta da vida. Agora, que somos quase todos inférteis, é que a tecnologia de regeneração é quase impossível de aplicar – ironia das ironias. E pensar que esse foi o motivo ideológico da guerra. Melhor, esse foi o motivo que nos impingiram como o motivo pelo qual destruíram o céu, secaram o mar e carregaram os solos deste zumbido radioactivo. Mas não foi. Nunca é. O motivo é sempre o mesmo. O motivo da primeira, da segunda, e da terceira não seria diferente do de todas as outras guerras: mesquinhez e ignorância. Uma luta estúpida e desmedida por um poder que é tão provisório como as nossas vidas e a ignorância do quanto podemos fazer com o pouco que sabemos.


Mas ainda assim, mesmo depois de tudo isto, as intrigas continuam – dentro da Cúpula. As famílias disputam entre si coisas que nunca demos valor, mas que agora são verdadeiramente importantes – água potável, comida de verdade, parceiros férteis e viáveis. E parece que a política veio agarrada a nós, como um carraço que sobrevive ao dilúvio. Continuamos a ser macacos mal amestrados, mas agora dentro de uma redoma mais pequena. Guinchavamos por um lugar ao sol, e desta vez por um lugar à sombra deste novo sol. É completamente absurdo, autista, mas continuamos a ter políticos, polícia, Estado, lei... para trezentas e poucas mil almas dentro duma redoma... como queijo protegido da gula das moscas.


A Cúpula foi construída por um punhado de poucas centenas de homens que tiveram a coragem de sair por oito meses do Abrigo Central - um bunker miserável sem o mínimo de futuro. Com um pouco de engenharia construíram, dentro do possível, um abrigo para tentar desenvolver algo que se assemelhasse a uma esperança. Esses homens, na sua larga maioria, morreram ainda antes da conclusão, pela mão da implacável e muda radiação. Esses eram homens – abdicaram de si por nós. Mas volto a perguntar-me: para quê? 


Este dilúvio teve o mesmo resultado do outro – a reconstrução de uma ninhada de ratos, abrigados numa Gomorra enfrascada. Confesso que me vou fartando de esperar que nasça o sol, para me voltar a desiludir com um disquinho luminoso no meio da escuridão.


Eu sei, e alguns de nós têm a certeza, que lá foram sobrevivem viventes, mutantes, com as suas gerações transgénicas, nos subterrâneos do mundo – metropolitanos, redes de esgotos, o que desse. Mas nós nunca tivemos a coragem de os tenta contactar. E sei que os nossos líderes (sim, os lideres voltam sempre a aparecer…) mantêm a secreta esperança que eles padeçam antes de os podermos ver. Mas seria no mínimo pedagógico, para percebermos no reflexo deles o que fizemos...


Tenho entretido os dias a ler os poucos livros que não foram apagados dos discos rígidos pelo Clarão. Vou buscar a dose diária de alimento de síntese ao Laboratório da União, num passo calmo e de quem já não tem muito a perder, mas consciente que pior que perder é dar-se a perder. Mas é difícil levar uma vida organizada quando o sol, quer nasça quer se ponha, não muda a cor do céu. Não tomamos banho normalmente porque a água é racionada, reciclada, mantida sob um controlo policial militar – passamos toalhas com álcool no corpo. Tento não respirar muito fundo para não absorver o ozono e os aditivos desinfectantes e toda a merda que agora misturam no ar. E a Janela já não existe - racionamento energético. 


Mas de tudo, o que me custa mais, por muito egoísta e estúpido que isto vos possa parecer, é ter que explicar um dia ao meu neto, que talvez nasça este ano,  que o céu era azul, que o mar tinha um cheiro, que havia chuva, estações do ano, uma luz natural que a nada se compara ao zunir das lampadas fluorscentes. E na verdade nem sei bem com isto aconteceu, não o vou conseguir explicar. Não sei o que lhe direi se me perguntar porque não fizemos nada... Às vezes, no pouco sono que vou tendo,  sonho que houve alguém que conseguiu evitar tudo isto – e eu estou na praia a comer uvas.

 

 

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O fim dos marretas

- Está?! Fozzie?! Daqui fala o Gonzo, vou passar uns dias em Manchester e era para perguntar se ainda moras por aí e se queres combinar um café ou tomar um copo ou assim.
- Gonzo?!?! Fogo, há quanto tempo…Claro que sim, diz-me quando vens e é só combinar…fogo, que cena…
- Epá, amanhã à tarde já vou estar por aí, devo ficar numa pensão ou num hotel qualquer e podíamos beber um copo por aí…
- Ok, ok, combinadíssimo. Liga-me amanhã então!
Dei por mim no comboio a caminho de Manchester, na verdade não sabia exactamente ao que ia. Andava perdido, tomado por um vazio angustiante e procurava-me, acho que perseguia a redenção. Todos os amigos que tinha foram-se com o dinheiro e com a fama, estava agora sozinho, completamente sozinho. Sentei-me ao lado da janela e fui vendo o tempo passar, de um azul corrido, a terra a ficar para trás, a melancolia cavalgando a paisagem afugentando os pássaros sem rumo, contemplando a inquietação das recordações que me encheram os olhos de algumas lágrimas negras que me atravessavam lentamente o longo nariz e ia sorrindo lembrando-me dos bons tempos do programa, a fama, o dinheiro, os copos, as festas, o dinheiro, as mulheres, tudo. Mas tudo se perde, tudo se perdeu. O comboio continuou sempre de forma linear seguindo ordeiramente a linha-férrea até à estação de Piccadilly, por entre o meu sono cavado.
Agarrei na minha mochila, uma Eastpack velha e riscada, com uns quinze anos talvez, e saí do comboio. Vi-me um pouco perdido por ali, no meio de uma multidão que seguia desarranjadamente não sei para onde, embora me sentisse confortável naquele sítio. Pedi algumas informações a um miúdo carrancudo, todo vestido de preto e pintado e com uma crista vermelha, neo-punk ou algo que o valha, e saí dali em busca de uma pensão barata e agradável, essencialmente barata, visto a conta, em tempos recheada, encontrar-se agora despojada. Andei uns dois quilómetros até encontrar uma pensão manhosa – there goes one hotel - que ficava imbricada num beco, um prédio velho e não muito alto, indicada por um tipo de andar estranho, erguia exageradamente os joelhos como se de barbatanas andasse, que me olhou com olhos de quem me estava a reconhecer,
- Desculpe, conheço-o de algum lado?! Disse-me desconfiado de mãos perdidas no fundo dos bolsos.
- Penso que não, nem sequer sou de Manchester, estou apenas de passagem, objectei a fugir agradecendo com um erguer de punho fechado e polegar arrebitado e um sorriso esguio.
Cheguei ao meu quarto, após me ter cruzado com uma insidiosa gata arraçada que vagueava pelo corredor num vogar vespertino, número vinte e sete dizia a plaquinha rachada pregada na porta, e sentia-se o mofo a flutuar pelo quarto, temperado com alguns pentelhos dispostos erraticamente pela colcha cravada de losangos às cores, lembrou-me umas mantas antigas que aqueciam a casa da minha avó. O vazio e o tédio estão cada vez mais difíceis de aguentar. Encostei-me um pouco a ver televisão enquanto fazia tempo até me encontrar com o Fozzie que já não via havia anos, - como será que estava? Pensei. A televisão, de um vermelho pequenino, não passava nada de jeito e o barulho da alguma chuva que havia tomado o ecrã era irritante, mas não tinha mais com que me entreter. Enviei uma mensagem ao Fozzie, - Como é, o copo mantém-se? A que horas e onde combinamos? E continuei por entre o aguaceiro que banhava a televisão vendo uma merda de um programa manhoso da MTV em que a mãe e a avó disputavam a namorada da filha e neta, respectivamente. O telemóvel apitou e vibrou no preciso momento em que abria um pacote de maltesers que tinha comprado na estação de comboios, um pequeno roubo, vício de miúdo, - Claro que sim! Podemos encontramo-nos daqui a pouco em Piccadilly na Aytoun Street e jantamos por lá, que achas? – Às 21h então. Abraço, respondi escrevendo a mensagem com uma só mão, enquanto, com a outra, vazava velozmente, até meio, o pacote de maltesers. Fui tomar um duche rápido, a água, baça e pesada, massajava-me a nuca e o corpo, encostado à parede, perdido por entre o vapor que entretanto se tinha levantado, - Engraçado, não faço ideia de como vim aqui parar, na busca de passado, de redenção e perdão, nem sei bem porquê…talvez seja a única solução para continuar a viver, pensei alto por entre repuxos de água que ia esguichando contra a porta do duche.
Vesti-me num ápice, engraçado como já não ligava àquilo que vestia, e saí da pensão, por umas escadas íngremes feitas de um carvalho gasto e escuro, deixando as chaves na recepção com um tipo de pele avermelhada e sorriso pedófilo na cara, que pela atrapalhação devia estar a consultar sites de conteúdo menos próprio.
Fui andando, discretamente, pedindo informações aqui e ali até conseguir chegar à Aytoun Street, onde o Fozzie já se encontrava à minha espera. Reconheci-o imediatamente apesar de ter engordado imenso, uns cinquenta quilos. À parte disso pouco tinha mudado, sorriso rasgado e parvo, nariz rosa, delator do seu vício de sempre pela pinga, pêlo castanho, agora esguedelhado, e o mesmo minúsculo chapéu castanho de anos.
- Gonzo, há tanto tempo!!! Disse-me abraçando-me sentidamente, embora dificultado pela grande barriga, barril de cerveja, que transportava agora. - É verdade, não quero parecer lamechas, mas, fogo, tinha saudades tuas pá, há tanto tempo que não te via…aliás, do pessoal dos marretas já não tenho contacto com quase ninguém…
- Pois, a última vez que nos vimos foi no funeral do Scooter há uns quatro anos, depois do desastre do gajo, que perda pá…retrucou olhando para o céu com um ar ascético,
- Epá, vamos comer qualquer coisa ali ao Indian House, um restaurante pequenino onde costumo ir, que fica ali naquela esquina, come-se bem, tem uns bifes com molho de mostarda de bradar aos céus, bebe-se melhor ainda e é baratinho. Confesso que inicialmente me senti um pouco estranho ao olhar para um dos meus melhores amigos e ficar, de certa forma, incomodado, por vezes sem saber bem o que o dizer, embora a cerveja e o vinho que fomos bebendo, que temperava os dois bifes bem servidos, ter quebrado o gelo e dois copos que tombei com o cotovelo direito, sinal do álcool que me já alegrava o sangue. A noite destilava agora bem num desassossego crescente.
- Então e a Miss Piggy, está tudo bem? Esse casamento? Perguntou inocentemente numa curiosidade felina.
- Epá, não gosto muito de falar nisso, mas enfim. Separámo-nos. A tipa fugiu com o Animal, é uma puta como todos sabíamos, só eu é que andava iludido. Ainda andei fodido por uns tempos, bares e álcool, completamente por tudo, sem rumo, mas caguei. Não vale a pena, disse-lhe tentando desvalorizar a minha ainda perturbação com toda a história.
- Não fazia ideia. Desculpa ter perguntado, disse-me embaraçado.
- Na boa, só fico triste por ter perdido o meu melhor amigo por causa dessa puta. É verdade, sabes alguma coisa do Cocas? Interroguei-o com um brilho ambíguo nos olhos.
- Epá, há algum tempo que não o vejo, mas o gajo andava todo fodido, acho que alcoólico, ainda andou metido na coca e noutras merdas, arrastava-se na ilusão de tocar e sei que andava a tocar nalguns bares, acho que mora em Cheshire, em Macclesfield. Desculpa dizer-te, mas o gajo desde que a Miss Piggy o deixou para começar a andar contigo nunca mais foi o mesmo. Ainda se tentou suicidar umas quantas vezes, segundo sei.
- Pois, e percebo-o. De certa forma, foi uma facada nas costas e éramos os melhores amigos na altura, mas sabes como a Miss Piggy era, irresistível, uma oferecida…na altura era novo e sempre tinha tido uma panca pela gaja, que me conseguiu dar a volta à cabeça na cama, enfim. Ainda tentei falar algumas vezes com ele, telefonei-lhe e escrevi-lhe, mas nunca me respondeu sequer. Acho que vou até Macclesfield tentar encontrar-me com ele, aquilo também não é muito grande, sou capaz de o conseguir encontrar por lá…que achas? Disse num tom róseo do copo de vinho que tinha acabado de beber quase de estalo.
- Iá, vai a bares, ele toca por lá, aliás, a última coisa que soube dele foi que recentemente começou mesmo a ter algum sucesso, acho que gravou uma cover qualquer e uma editora boa quer contratá-lo, li na net, num blogue qualquer…respondeu-me num tom já alto e grogue.
- Vou à casa de banho e volto já, repliquei comendo já as palavras, que tinham dificuldade em sair pela garganta algo apertada.
Tentei levantar-me e quase caí para o lado, por entre os risinhos de duas tipas que estavam na mesa do lado, lançando charme puído por um leve travo a sexo, fruto da grande bebedeira que já levava, já tínhamos bebido três garrafas de um vinho francês finório e forte, esvaziadas em menos de duas horas, e lá me arrastei até à casa de banho minúscula e tombada. Quando dei por mim andávamos estrompidamente pelas ruas de Manchester com as duas tipas, pintadíssimas de mau gosto, mas que por esta altura já me pareciam modelos da victoria’s secret, anjos exterminadores de longas asas, que nos tinham reconhecido, crianças na altura em que nos viam embasbacadas em frente à televisão, e se colaram a nós e lá fomos arrastados pela nossa fama patética até um pub extremamente mau, vestido de camisolas assinadas de clubes, manchesters e arsenais, música de megera ao vivo, que já pouco discernia e dançava movido pela força do álcool que me ia embalando, por entre canecas, escorrendo, que não paravam de marchar ruidosamente, pé ante pé, por cima do balcão. Demos por nós a cantar uma merda qualquer, pelos vistos o hino do Manchester City, no meio de uma claque que grunhia estrondosamente,
- Grande noite Fozzie, gritei-lhe enquanto uma das tipas me apalpava o rabo.
- Foda-se, podes crer, disse-me felicíssimo, agarrando barbaramente a irmã, que lhe ia fazendo festinhas na barriga descomunal, enquanto ria desalmadamente e bebia um cocktail vermelho com uma floresta lá dentro que sabia a base. Acabamos num bar chamado Velvet, acho, cheio de paneleiros e putas endomingadamente vestidos de cores garridas e fluorescentes que iluminavam a sala e gritavam estridentemente a testosterona que lhes saltava pelos ouvidos e narizes, e dançámos ora entre passos de dança ridículos que animavam com enlevo a noite, ora agarrados, bem agarrados, à Kim e à Jessie, irmãs de sangue e de engate, ao som de umas músicas antigas de mau gosto dos anos oitenta e noventa, êxtase de uma noite bebida e transpirada, até uma delas me cochichar algo ao ouvido e acabarmos na cama,
- Despe-te toda, menos as meias pretas e os saltos…
Acordei com a cabeça inchadíssima de ressaca com a Kim deitada ao meu lado, semi-nua e com a maquilhagem palmada nos chineses toda esborratada e pensei, - foda-se, que merda, mas não sei porquê, ainda assim, sorri num estrabismo confuso de pós-bebedeira.
Comecei a arrumar as coisas por entre a roupa e restos de preservativos e papel higiénico espalhados pelo chão do quarto da madrugada de bródio, até a gaja acordar,
- Bom dia, sussurrou numa voz terna e rouca.
Arrumei num instante a mochila, e convidei-a para tomar o pequeno-almoço – um litro de coca-cola e uns salgadinhos. Era feia, mas de corpo nem era má, embora se vestisse mal como a merda, com um ar putinha de bordel de beco e a roupa toda engelhada da noite de graça que me facultou. Despedimo-nos com um beijo na boca mal amanhado, e um,
- Até um dia destes, disse-lhe fugidiamente.
- Se apareceres em Manchester telefona-me, disse-me embora pouco convencida de que lhe ligaria alguma outra vez.
Meti-me num táxi até à estação de comboios e apanhei um comboio até Macclesfield. Tinha os olhos pintados de um vermelho sangue, para além da azia que me comia o estômago, ainda vomitei uma vez na casa de banho do comboio, e depois resolvi dormir um pouco, durante o comprido do dia, sob o olhar censor e crítico de uma velha, com uma carapinha cómica e ar sisudo, que não parava de me fitar seriamente, julgando-me e condenando-me no imediato sem sequer me permitir alegar.
Acordei já em Macclesfield a entrar numa pensão, esta um pouco melhor, enquanto pagava duas noites ao tipo da recepção, cem libras, que me recebeu de pés erguidos no balcão, enterrado na cadeira caída para trás, e me atirou as chaves como se de uma bola de basket se tratasse, por entre um,
- Tenha uma boa estadia.
Pousei a mochila e dormi novamente, até à hora de jantar, de barriga para baixo agarrado a uma almofada de um branco lavado e quadrada. Desci e perguntei ao tipo da entrada se conhecia o Sapo Cocas, um músico que vivia ali por Macclesfield e que supostamente andava a tocar em alguns bares,
- O tipo dos Marretas?! Perguntou-me imediatamente.
- Exactamente,
- Sim, sim, o bêbado, afirmou sorrindo. Ele costuma tocar em bares, é verdade, e hoje, se não me engano, vai tocar no Ronnies Bar, que fica perto da Barton Street, lá para as 23h, respondeu-me num tom de algum escárnio.
- Agradeço-lhe imenso, retorqui saindo por entre as portas emperradas do hotel.
Fui até um barzinho com um aspecto singular, onde comi uma óptima tosta que me voltou a alegrar, e segui novamente caminho enquanto pensava sobre qual seria a reacção do Cocas ao ver-me tanto tempo depois, tendo em conta tudo aquilo que lhe fiz. - Foda-se, se ele soubesse o arrependimento que me vai na alma. Se pudesse recuar no tempo e apagar todas as burrices que fiz…, pensei enquanto pisava à vez os quadrados pintados da calçada do passeio. Engraçado como chegamos a determinada altura das nossas vidas e ficamos felizes com pequeníssimas e insignificantes coisas como comer uma tosta melhor do que aquilo a que estamos habituados, frango extra com maionese de alho, muita cebola e tomate e orégãos, é estranho este envelhecer e ainda mais estranho o desaparecer de todos os amigos em troca de um mero baú da memória vazio, carpido pelas lembranças que nos foram criando sem nos avisar da partida. Vagueei ainda cerca de uma hora pelas redondezas até chegar perto do Ronnies, a entrada era manhosa, com umas luzes de néon vermelhas que iam piscando à vez, dignas do melhor alterne, com um porteiro enorme, igualzinho ao Robocop, que me pediu dez libras para entrar, na sua voz metálica, com direito a um whisky. Fui direito ao balcão que nem um tornado, ainda encalhei numa mesa e tombei um cinzeiro transparente cheio de cinza e beatas mal acabadas, beber rapidamente qualquer coisa - estava nervoso com o encontro. Depois do whisky, bebi uma caneca em pouco mais que três goles e dois caucasians, bem fortes, até o concerto começar. O Cocas estava cadavérico de magreza, os olhos continuavam brancos mas ainda mais esbugalhados e grandes e a sua tez era agora de um verde acizentado, apagado, fruto da erosão do tempo, parecia ter uns cinquenta anos e a voz urdia roucamente versos de uma plangência e mágoa intrigantes. Não me viu, estava encostado ao balcão, era talvez o único verdadeiro amigo que tive, pensei enquanto cuspia fumo para cima do cabelo de uma tipa com ar de quenga que irritantemente me tapava a visão. Foi tocando, com o bar apinhado de miúdos em polvorosa para o ver e ouvir, e não é que aquilo era mesmo bom?! Começou a dedilhar uns acordes, numa repetição cadenciada da guitarra, que silenciaram a sala, no eco das suas palavras criando um âmago de imagens febris, estava a tocar uma cover da hurt dos Nine Inch Nails, reconheci, parecia o Johnny Cash, e arrepiei-me. O refrão fez-me lacrimejar, “no que é que me tornei, todos os que conheço vão-se embora no fim”, as lágrimas foram correndo embaraçosamente pela cara enquanto as encobria com a manga da camisa e bebia, emotivamente, mais umas imperiais, tomado por um arrepio colossal que me irrompeu espinha adentro, enquanto o Cocas ia cantando aqueles versos tristíssimos, sentindo-me só como nunca havia sentido até ali. O concerto acabou e todos bateram palmas fulgorosamente, e bati palmas, de pé, por largos minutos…Que concerto enorme, nunca tinha sentido algo assim, tão magnificente. Quando a sala começou a esvaziar mais, aproximei-me, por entre as pitas histéricas aos gritinhos que procuravam à força autógrafos e todas as marcas que lhes fossem concedidas, até que me viu, olhando-me estático. Aproximei-me, e apesar de já toldado, o meu coração pinchava-me o tórax com uma força desmedida rasgando-me quase a camisa,
- Gonzo, tu por aqui, disse-me sem demonstrar qualquer emoção, apesar de notoriamente aturdido.
- É verdade, há quantos anos Cocas. O concerto foi mítico, adorei pá. A sério, disse-lhe numa sinceridade patente.
- Obrigado. Mas diz-me Gonzo, o que queres de mim? Ripostou friamente. - Cocas, gostava de falar contigo, pedir-te desculpa, explicar-me, saber de ti, ainda és o meu melhor amigo, isto é, na verdade não tenho amigos já, não tenho ninguém, tenho vergonha do que te fiz, perdi a única pessoa com quem podia realmente contar, o que me marcou a vida. Anos a pensar nisto, em querer voltar atrás e apagar tudo.
- Hum, já passou muito tempo…A Piggy? Perguntou-me desinteressadamente. - Fugiu com o Animal há três ou quatro anos, respondi-lhe, ao mesmo tempo que me observava com os seus grandes olhos brancos, respondendo-me,
- Na altura entrei em colapso com tudo o que aconteceu, disse que nunca te perdoaria, nem a ti nem à puta, mas éramos miúdos, a fama do programa, de uma forma ou de outra, corrompeu-nos a todos, e sim, todo este tempo depois, apesar de tudo, és o único verdadeiro amigo que tive, respondeu-me num olhar agora aberto,
– A mágoa já lá vai, percebi que não vale a pena, não vale mesmo. Vamos embora daqui. Vamos beber um copo por aí, quero saber tudo Gonzo, e caminhamos e desaparecemos lado a lado, como em tempos, pelas ruas de Macclesfield, sob o som da lua enorme e brilhante, estranhamente não embuçada pelo habitual nevoeiro britânico.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

O Noivo

Vou engolindo os separadores do traço descontínuo, rectângulos brancos que se escondem no fim do vidro, um pulsar monótono e interminável que no fundo é o meu consolo. Sou motorista vai fazer vinte anos em Setembro. Tudo começou com uma brincadeira, como quase tudo o que de sério tenho na minha vida. Tirei a carta de pesados por brincadeira, para fazer companhia ao meu amigo de altura, depois meu cunhado. Nunca me revi a fazer isto, nunca o meu curso de germânicas o ditaria, mas a brincar passaram-se vinte anos.

Transportei coisas que nem sei que existem para pessoas que já nem sei se ainda existem. Levei no semi-reboque, como quem leva no bolso, paletes de águas gaseificadas de importação que vão custar os olhos da cara num restaurante em Linz, sabonetes de luxo para lavar a pele de uma senhora que mora em Köln e que tem um medo enorme de envelhecer, papel que servirá para despedir o motorista do secretário de estado do Chipre, cerveja que irá embebedar a Teresa em Cádis e por isso será mãe, reagentes para análise que vão contar ao Joseph coisas que o vão tirar de Amesterdão e o vão levar para a Bolívia, milhares de portáteis - e um desses vai servir para escrever o prémio Nobel de dois mil e catorze. Eu não sei nada disto é claro, mas como narrador que sou, gozo do direito à omnisciência. É um truque da escrita, que permite-me ver mais do que o que sei. Culpem o escriba.

Conheço noites de auto-estrada intermináveis e tardes de via rápida sem fim. E gosto. Gosto mais do que das manhãs nervosas e apertadas em que todos os outros mortais conquistam o direito ao alcatrão, numa ânsia de chegar ao centro do centro, ao parque comercial da zona industrial, ao nono departamento da oitava secção da primeira divisão, para chegar a horas. Chegar a horas é a construção mais estúpida que a gramática me oferece. Como se eu chegando depois as horas não esperassem por mim.

Estou a conduzir há três horas. Não tenho sono, mas vou parar na estação de serviço – um reflexo aprendido com os anos e que no fundo é mais um ritual que serve para combater a solidão. Café tenho no térmico, comida na lancheira, música no rádio, não quero cola, não fumo, não posso beber e não quero revistas cor-de-rosa, ou porno, ou de palavras cruzadas. Não preciso de porta-chaves do Barcelona, não preciso de batatas fritas, não preciso de dêvêdês do Steven Seagal nem de bolas de praia – até porque o verão ainda não começou nem no calendário nem na praia. Paro para parar, porque devo parar, porque sei que parando cumpro para com algo e isso chega-me.

Peço um café com leite, que bebo mais pelo calor que me dá do que pela cafeína ou pela proteína do leite. E respiro… devagar, não há pressa nenhuma – não posso passar dos noventa à hora, não vale a pena pensar em acelerações, nem em velocidade e a distância… essa é fixa, vai-se reduzindo com o avançar da noite. Adoro as estações de serviço, no sentido intrínseco da palavra. São locais de culto em que me perco como um Álvaro de Campos da camionagem. E isso é bom, faz-me bem. As personagens gastas e psicadélicas que se cruzam comigo neste antro gasolineiro distraem-me como um programa vespertino de televisão. E volto à estrada.

Por vezes sinto que a estrada é um fio longo, muito longo, interminável e que o engulo, engulo tão devagar que não há paciência possível. Ligo o rádio, desligo o rádio, ligo o ar condicionado, abro a janela, ligo o rádio, desligo o ar condicionado, vejo o telemóvel, acerto a hora, desacerto a hora, fecho a janela, mudo de estação, vejo o telemóvel, acerto a hora, acerto o banco, agora é o espelho que não está certo, ligo o ar condicionado, paro na estação de serviço.

Outras vezes sinto que a estrada é uma fita magnética com uma melodia doce e lenta, que eu toco como se fosse uma cabeça de um leitor de cassetes, e que por mais devagar que fosse nunca a conseguiria ouvir até ao fim. E tudo me sabe bem. O reflexo dos sinais, os padrões do alcatrão, os animais que morrem no alcatrão, os buracos onde falta alcatrão. E a fita vai rolando, marcando um ritmo que eu acompanho com o indicador no volante. E tudo é novo. As placas que já conheço de cor onde têm ferrugem, as curvas apertadas, as curvas longas, as árvores e os sítios onde estavam árvores, as localidades e os seus peões incautos, as autoestradas e o seu modo automático. E esqueço-me de parar. O que é mau, porque como sabem, isto não é um mar de rosas – existem leis. Leis sobre velocidades mínimas, máximas e restantes, sobre quando parar, sobre quanto carregar, sobre o que levar, sobre o que ter… não existem leis sobre boleias, até agora. E por isso às vezes arrisco.

As boleias são como um investimento de risco, uma acção cotada na bolsa, um namoro com uma rapariga com o cabelo roxo, uma droga nova que ninguém sabe como bate, um vinho muito velho em promoção. Arrisco três ou quatro horas de viagem com uma pessoa. Pode ser uma alma iluminada, pode ser um estafermo – não há como saber. E tudo o que se possa dizer de antemão, baseado em factores diversos, computacionados e avaliados em pormenor, ou holisticamente,  não é conclusivo. Porque o aspecto é enganador, porque o sorriso de quem precisa é enganador, porque a postura corporal é enganadora… até eu me engano a mim próprio por aversão à solidão. Mas não se enganem comigo! Eu dou-me bem com a solidão, cultivo uma relação de extrema amizade com ela.

E esta noite decidi levar de boleia uma rapariga que tinha o carro empanado na estação de serviço, gritava ao telefone num francês perfeito, cara de desespero mas arrogante, olhos azuis brilhantes e fusilineos, uma boca fina e cara magra de acordo com o corpo, apesar de bem salientado em geral. Perguntei-lhe no meu francês macarrónico se estaria interessada em boleia em direcção a Lyon, mas que teria que ficar na última estação de serviço antes da cidade, já que eu não iria entrar pela urbe adentro. Lá me olhou com desconfiança, eu quarenta e dois, ela trinta e um. Mas aceitou, talvez pela necessidade que tudo empurra e tudo lubrifica, que aguça o engenho, limpa a vergonha e arranja forças nas pernas de um velho.

Expliquei-lhe que a viagem demoraria cerca de duas horas, sempre com o limite de velocidade na cabeça, mnemónica de condutor profissional, coisa que já não sai do cérebro, tatuagem invisível. Sorriu e disse-me que isso seria o menor dos males. E lá fomos.

Primeiro aquelas coisas normais, ter ou não ter bagagem, pode levar aí mesmo à frente – não faz mal. Depois as cortesias, que pagava a gasolina se fosse necessário. Não consegui evitar de rir, e foi por aí que a conversa começou. As conversas, dizia a minha mãe, são como as cerejas. Eu digo que são como um mapa de uma cidade em construção, de uma rua liga a outra, e a outra, e a outra. Lá lhe expliquei que o camião mexe-se à força de gasóleo, que abastece aos 400 litros de cada vez, que eu lhe ofereci boleia, não foi ela que me pediu, e que seria impossível de fazer qualquer tipo de contas sobre quanto custava o gasóleo dela! E pronto, arrancamos.

A curiosidade é algo de natural, é um instinto, é uma força que move as pessoas, os animais, talvez até as coisas.  E moveu a nossa conversa. Lucien é assistente social, apoia prostitutas toxicodependentes na chamada faixa de risco, ou seja aquela fase em que tudo parece estar perdido. E perdido por cem é perdido por mil, sem preservativo, sem regras, com agulhas, seringas, pratas e limões. Perante essa visão acabei por deixar sair uma banalidade pela boca fora, nunca imaginaria uma rapariga com um aspecto tão frágil a fazer esse combate diário. É uma vantagem, disse-me ela, uma máscara, uma bóia de salvação perante o demónio.

Contou-me de como é fácil passar o risco, o tal que todos sabem que existe mas que ninguém vê. A primeira hora de viagem foi a falar dessas pessoas, das que estão junto do risco, umas por opção, outras pela força da correnteza do rio da vida. Todos dizem que a vida é um caminho, que escolhemos a estrada que queremos seguir. Mas eu que conduzo em todas as estradas, que escolho entre todos os caminhos, digo que não. A vida é um rio. Um rio de corrente forte e indomável, onde a força dos remos resolve pouco, muito pouco. Não caminhamos, somos arrastados. Uns melhor, outros pior.

A segunda hora foi rir. Rir muito. Das peripécias dela com os proscritos pelo mundo normal. Do meu mau francês e do péssimo inglês dela, do meu curso de germânicas e porque nunca acabei por o usar, enfiado numa escola a ensinar palavras estranhas a adolescentes borbulhentos. E lá acabei por lhe dizer essa parte estranha, mas doce da minha vida. Como por brincadeira tirei a carta de pesados, como fazia companhia ao meu amigo, mais pelo interesse na irmã dele. Como ele acabou por se casar com a minha irmã e como eu acabei por me separar da irmã dele. E rimos da dor. Da dor de Lucien nunca conseguir realmente resolver algo em definitivo na vida das putas e dos drogados, de como eu pareço nunca chegar a lado nenhum apesar de passar os dias a viajar, do facto de nenhum dos muitos namorados de Lucien compreender a dedicação dela a pessoas que não lhe agradecem na maior parte das vezes, do meu problema de ausência permanente, e rimos de estarmos a rir. 

Confesso que fiquei triste quando chegamos ao ponto B da recta que unia o carro empanado da Lucien e a estação de serviço do quilómetro duzentos e oitenta e três da auto via A quatro cinco zero. Confesso que fiquei arrependido de não lhe ter pedido o contacto, convidado para um café, para um vinho, para uma noite. Mas de arrependimento está o inferno cheio e lá segui para Paris – tenho que chegar, entregar este contentor cheio de pólos quase de marca a uns chineses duvidosos que depois de coserem muito bem cosidos uns lagartos retorcidos no peito, os vendem, todos contentes, por tuta e meia.

De manhã tomo um banho no quarto da pensão e visto a segunda muda de roupa que sempre trago na mochila. Lá por ser nómada não tenho que ser porco! Como um pequeno almoço que faz jus ao adjectivo que acompanha o almoço e sigo de volta para Badajoz. Lá me espera o armazém, a carga de mais qualquer destino que ainda não sei. E prefiro assim. Alimento uma curiosidade, que se completa no momento da revelação, como um sexo entre coisas esteréis.

Na volta não resisto a passar por Lyon, uma desculpa qualquer que me falha agora, mas julgo que foram pneus… como se não houvessem pneus em Espanha!

Mas não encontrei de volta o acaso. E então conformado regressei. Devorei os quilómetros com uma raiva miúda de quem queria mais arroz doce mas sabe que não pode.

Passados cinco anos encontrei Lucien em Sevilha, eu estava de férias e ela também. Disse-lhe que estava farto de viver sozinho, ela também.

Não nos casamos, mas vivemos juntos em Lyon. Eu agora dou aulas de inglês a franceses seniores. A correnteza do rio levou-me.