quarta-feira, 22 de abril de 2009

Os periquitos também são felizes

Era uma vez um jovem casal de periquitos feliz da vida, feliz com a vida. Eram ambos novos e bem sucedidos, apregoava a gente e a sociedade. Tinham tudo - uma carreira sólida e em ascensão, uma linda e folgada casa na zona de Cascais, com vista para o mar, comprada pelo sucesso profissional que guardavam num banco espanhol, uma relação que ia de vento em popa navegando existência fora, uma carreira e um projecto para uma vida e várias outras, dois carros topo de gama, um cinzento metalizado e refulgente de quem tem a conta recheada, e outro grande e espaçoso de matrícula estrangeira, era fino na altura, tudo acompanhado da excelente imagem que possuíam no meio, convidados frequentes dos eventos da finória socialité. Resumindo, tinham tudo, mesmo tudo.
Ele era ridiculamente pequeno, era minúsculo, não era um periquito anão, mas poderia ser. Ainda assim, cantava de baixo para cima e de papo cheio que nem um pavarotti de aviário. Ele era importante, mandava nos outros, sabia mais que os outros, gritava com os outros, e tinha uma esposa, ela, que era bela, de certa forma era grande ao contrário do seu módico tamanho. Ela era calada e feliz, tinha tudo para ser feliz, não havia qualquer razão para não ser feliz, estava casada com ele, grandemente bem sucedido. Era bem-parecida, vestia-se de penas de um amarelo garrido e espampanante, que nem o sol e queimava de olhar, e agora também dispendioso, a vida desafogada permitia-o, ainda que se dissipasse na multidão pelo seu perfil altero. Mas era feliz, tinha tudo o que sempre sonhou.
A casa onde viviam, pintada de um branco altivo, cravada no penhasco mais alto que encontraram, que flamejava lá no cimo, a inveja de todos os vizinhos, estava decorada de bibelôs pelas estantes, e outras pequenas peças de arte de um estranho gosto, embora escolhidas a dedo, sofás do IKEA, lustrosamente modernaços aos olhos de muitos, dispostos ordeira e simetricamente, móveis tradicionais de um castanho-escuro e maciço cheio de rebordos trabalhados à mão e outras mariquices que enchiam o espaço despojado da enorme casa ditosa.
Gostavam imenso de animais de estimação, porque a educação assim o ditou, e tinham um casal de humanos, prenda de casamento de uns amigos colegas de trabalho, que vivia numa enorme gaiola, esqueleto oval de finos ferros arqueados que nem varas verdes que encerrava a perspectiva. O casal de humanos, cerceado na grande gaiola branca e dourada, cantava por obrigação, sorria por dever, e queria correr para longe mas não podia, estava prisioneiro naquele cárcere inquietante. Nunca viram o que o horizonte guardava. Arregalando o olhar nas suas órbitas cavadas e impassíveis, perguntavam-se muitas vezes sobre qual o crime que teriam cometido para a prisão perpétua que cumpriam sem sequer terem sido condignamente julgados? Uma vida a olhar para o exterior, de pescoço e olfacto esticados, a conjecturar sobre como seria a vida lá fora, a liberdade de que os franceses se gabam, o mundo.
Um dia a periquita chegou a casa, após um longo dia de trabalho, e disse ao fiel e mínimo esposo,
- Amor, quero ser mãe.
Ele sorriu de felicidade pela fortuna que lhes tinha tocado e decidiu que estava na altura de serem pais. Moralmente tratava-se de um imperativo, sabiam-no, estava escrito num qualquer tratado ancestral de boa família. Se já tinham uma vida perfeita, com um filho tornar-se-iam no casal arquétipo a seguir por todos os outros, panaceia da perfeição social e mestria familiar. Ambas as famílias ficaram radiantes com a notícia e festejaram todos num grandioso almoço de família, e comeram e beberam e gritaram e grunhiram festejando a excelente nova, todos em redor da grande mesa da sala, arfando aos brindes toda a sorte que tinham.
Nessa mesma noite começaram o árduo trabalho da procriação, ele pequeníssimo saltitando numa fornicação algo atamancada por cima dela, que nem um pincher com o cio, feliz, tentando confeccionar um filho, o último passo que restava para alcançar a perfeição e a felicidade autênticas, e ela calada recebendo-o simplesmente, tinha de ser, a felicidade e a perfeição requeriam-no. Passaram meses e nada, a felicidade desmedida era agora menor, pastosamente estranha, tinham dificuldade em se olhar nos olhos, marcaram uma consulta num médico privado, um periquito grande e gordo, com um timbre gritado de gigante rouco, escuro com ar de quem fumava dois ou três maços por dia, que, uns dias depois, acabou por lhes dar a terrível notícia de que o periquito era estéril e não podiam ter filhos. A felicidade foi assolada por uma profunda depressão, o casamento tremeu richteriamente, e tempos de confusão ainda encheram a imaginação da periquita de tormentos, mas um casamento uma vez selado divinamente, é-o até ao caixão, sob pena de pecado espiável mortalmente.
Tempos passaram e resolveram adoptar um periquito bebé, coitadinho, abandonado ou assolado por uma ou outra qualquer maleita social, infeliz, resolvendo, por um lado, o problema que lhes atacava a perfeição enquanto casal modelo e, por outro, permitindo-lhes prosseguir o bem, numa indulgência vertiginal, é que sem gestos destes, altruístas, não vamos para o céu, mesmo que sejamos periquitos dotados de fortes e longas asas que nem águias ou deuses.
O processo foi rápido, conheciam alguém na comissão de acompanhamento das adopções de periquitos, e a felicidade voltou em pleno àquela família, perfeita novamente, o periquito bebé era lindo, de uma penugem tenra e amarelada, piava esguiamente e fazia sorrir todos. O círculo estava completo, aquela vida era agora perfeita, estava acabada. Uma obra-prima tinha sido conseguida. Ele tinha agora trinta anos e ela vinte e seis, eram felizes como muito poucos, tinham essa ventura, porque tinham tudo. Conquistaram tudo aquilo que estava à disposição para conquistar.
O pequeno periquito, saía ao pai na altura, cresceu e esvoaçava pelos corredores encerados e radiantes da casa, numa ambiguidade delicada, o sangue que carregava nas veias não era o que devia, mas não sabia e era feliz e brincava todos os dias com o casal de humanos que ia sobrevivendo penosamente na grande gaiola. Cada vez menos cantavam, cada vez menos se deslocavam do poleiro, e iam fingindo sorrisos e assobios para que a família de periquitos não desconfiasse, por entre tremuras que anunciavam a demência. A gaiola era imensa vista de fora, mas minúscula por dentro, e todos os dias o seu interior os apertava jugularmente cada vez mais, tocando e fazendo estremecer os frágeis ossos dos humanos que a pouco e pouco iam cedendo na razão. O pequeno periquito apercebeu-se da tristeza funda que vivia com o casal de humanos, comentando com os pais, que logo lhe disseram,
- Não sejas parvo, eles têm tudo para ser felizes, vivem numa gaiola enorme, linda, comem do melhor, nunca lhes faltou nada, é impossível não serem felizes. O pequeno periquito sabia que não, leu-lhes nos olhos a melancolia sem fim de uma velha viúva, sabia da dolência que lhes sopeava o espírito.
Planeou um célere plano de libertação do casal de humanos e, nessa mesma noite, depois das onze, já os pais dormiam porque trabalhavam arduamente no dia seguinte, desceu sorrateiramente as escadas patinha ante patinha e aproximou-se da gaiola onde os humanos viviam enclausurados havia anos. Estavam acordados, na verdade pouco dormiam, as crises de ansiedade que os matavam não permitia, fitou-os e, por entre um charco de um silêncio pérfido, viu novamente aquilo que já sabia e, levantando a pequena asa, abriu a porta da gaiola. Eles ficaram estáticos, no vagar da imobilidade do ar, não percebendo o que o pequeno periquito queria deles, que lhes disse,
- Sigam-me. Embora desconfiados seguiram-no, ciciando de uma forma estranha, desconcertada, já nem sabiam andar, dirigindo-se para a porta principal. Chegando à porta disse-lhes que apesar de gostar imenso deles não aguentava vê-los assim tristes como se estivessem mortos, abriu-lhes a porta e desejou-lhes boa sorte e muita felicidade. Os humanos abraçaram-no simultaneamente por entre algumas lágrimas e sorrisos e disseram-lhe,
- És um bom rapaz, e seguiram um pouco perdidos, espantados com as soltas paisagens incógnitas que desconheciam, a liberdade que devoravam com o olhar e agora com todos os sentidos, de uma assentada só, num vórtice de sensações, e seguiram abraçados, felizes, desaparecendo sob a luz da enorme lua que iluminava o relento ensopado num amoníaco que lhes era desconhecido.
No dia seguinte, o casal de periquitos apercebeu-se da fuga e irritados pela perda, mas porque haveriam de fugir quando tinham aqui tudo para ser felizes, pensaram, e acabaram por comprar um novo casal de humanos, ainda mais bonito e chilreador, que voltou a encher a gaiola e a casa.

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