Vou engolindo os separadores do traço descontínuo, rectângulos brancos que se escondem no fim do vidro, um pulsar monótono e interminável que no fundo é o meu consolo. Sou motorista vai fazer vinte anos em Setembro. Tudo começou com uma brincadeira, como quase tudo o que de sério tenho na minha vida. Tirei a carta de pesados por brincadeira, para fazer companhia ao meu amigo de altura, depois meu cunhado. Nunca me revi a fazer isto, nunca o meu curso de germânicas o ditaria, mas a brincar passaram-se vinte anos.
Transportei coisas que nem sei que existem para pessoas que já nem sei se ainda existem. Levei no semi-reboque, como quem leva no bolso, paletes de águas gaseificadas de importação que vão custar os olhos da cara num restaurante em Linz, sabonetes de luxo para lavar a pele de uma senhora que mora em Köln e que tem um medo enorme de envelhecer, papel que servirá para despedir o motorista do secretário de estado do Chipre, cerveja que irá embebedar a Teresa em Cádis e por isso será mãe, reagentes para análise que vão contar ao Joseph coisas que o vão tirar de Amesterdão e o vão levar para a Bolívia, milhares de portáteis - e um desses vai servir para escrever o prémio Nobel de dois mil e catorze. Eu não sei nada disto é claro, mas como narrador que sou, gozo do direito à omnisciência. É um truque da escrita, que permite-me ver mais do que o que sei. Culpem o escriba.
Conheço noites de auto-estrada intermináveis e tardes de via rápida sem fim. E gosto. Gosto mais do que das manhãs nervosas e apertadas em que todos os outros mortais conquistam o direito ao alcatrão, numa ânsia de chegar ao centro do centro, ao parque comercial da zona industrial, ao nono departamento da oitava secção da primeira divisão, para chegar a horas. Chegar a horas é a construção mais estúpida que a gramática me oferece. Como se eu chegando depois as horas não esperassem por mim.
Estou a conduzir há três horas. Não tenho sono, mas vou parar na estação de serviço – um reflexo aprendido com os anos e que no fundo é mais um ritual que serve para combater a solidão. Café tenho no térmico, comida na lancheira, música no rádio, não quero cola, não fumo, não posso beber e não quero revistas cor-de-rosa, ou porno, ou de palavras cruzadas. Não preciso de porta-chaves do Barcelona, não preciso de batatas fritas, não preciso de dêvêdês do Steven Seagal nem de bolas de praia – até porque o verão ainda não começou nem no calendário nem na praia. Paro para parar, porque devo parar, porque sei que parando cumpro para com algo e isso chega-me.
Peço um café com leite, que bebo mais pelo calor que me dá do que pela cafeína ou pela proteína do leite. E respiro… devagar, não há pressa nenhuma – não posso passar dos noventa à hora, não vale a pena pensar em acelerações, nem em velocidade e a distância… essa é fixa, vai-se reduzindo com o avançar da noite. Adoro as estações de serviço, no sentido intrínseco da palavra. São locais de culto em que me perco como um Álvaro de Campos da camionagem. E isso é bom, faz-me bem. As personagens gastas e psicadélicas que se cruzam comigo neste antro gasolineiro distraem-me como um programa vespertino de televisão. E volto à estrada.
Por vezes sinto que a estrada é um fio longo, muito longo, interminável e que o engulo, engulo tão devagar que não há paciência possível. Ligo o rádio, desligo o rádio, ligo o ar condicionado, abro a janela, ligo o rádio, desligo o ar condicionado, vejo o telemóvel, acerto a hora, desacerto a hora, fecho a janela, mudo de estação, vejo o telemóvel, acerto a hora, acerto o banco, agora é o espelho que não está certo, ligo o ar condicionado, paro na estação de serviço.
Outras vezes sinto que a estrada é uma fita magnética com uma melodia doce e lenta, que eu toco como se fosse uma cabeça de um leitor de cassetes, e que por mais devagar que fosse nunca a conseguiria ouvir até ao fim. E tudo me sabe bem. O reflexo dos sinais, os padrões do alcatrão, os animais que morrem no alcatrão, os buracos onde falta alcatrão. E a fita vai rolando, marcando um ritmo que eu acompanho com o indicador no volante. E tudo é novo. As placas que já conheço de cor onde têm ferrugem, as curvas apertadas, as curvas longas, as árvores e os sítios onde estavam árvores, as localidades e os seus peões incautos, as autoestradas e o seu modo automático. E esqueço-me de parar. O que é mau, porque como sabem, isto não é um mar de rosas – existem leis. Leis sobre velocidades mínimas, máximas e restantes, sobre quando parar, sobre quanto carregar, sobre o que levar, sobre o que ter… não existem leis sobre boleias, até agora. E por isso às vezes arrisco.
As boleias são como um investimento de risco, uma acção cotada na bolsa, um namoro com uma rapariga com o cabelo roxo, uma droga nova que ninguém sabe como bate, um vinho muito velho em promoção. Arrisco três ou quatro horas de viagem com uma pessoa. Pode ser uma alma iluminada, pode ser um estafermo – não há como saber. E tudo o que se possa dizer de antemão, baseado em factores diversos, computacionados e avaliados em pormenor, ou holisticamente, não é conclusivo. Porque o aspecto é enganador, porque o sorriso de quem precisa é enganador, porque a postura corporal é enganadora… até eu me engano a mim próprio por aversão à solidão. Mas não se enganem comigo! Eu dou-me bem com a solidão, cultivo uma relação de extrema amizade com ela.
E esta noite decidi levar de boleia uma rapariga que tinha o carro empanado na estação de serviço, gritava ao telefone num francês perfeito, cara de desespero mas arrogante, olhos azuis brilhantes e fusilineos, uma boca fina e cara magra de acordo com o corpo, apesar de bem salientado em geral. Perguntei-lhe no meu francês macarrónico se estaria interessada em boleia em direcção a Lyon, mas que teria que ficar na última estação de serviço antes da cidade, já que eu não iria entrar pela urbe adentro. Lá me olhou com desconfiança, eu quarenta e dois, ela trinta e um. Mas aceitou, talvez pela necessidade que tudo empurra e tudo lubrifica, que aguça o engenho, limpa a vergonha e arranja forças nas pernas de um velho.
Expliquei-lhe que a viagem demoraria cerca de duas horas, sempre com o limite de velocidade na cabeça, mnemónica de condutor profissional, coisa que já não sai do cérebro, tatuagem invisível. Sorriu e disse-me que isso seria o menor dos males. E lá fomos.
Primeiro aquelas coisas normais, ter ou não ter bagagem, pode levar aí mesmo à frente – não faz mal. Depois as cortesias, que pagava a gasolina se fosse necessário. Não consegui evitar de rir, e foi por aí que a conversa começou. As conversas, dizia a minha mãe, são como as cerejas. Eu digo que são como um mapa de uma cidade em construção, de uma rua liga a outra, e a outra, e a outra. Lá lhe expliquei que o camião mexe-se à força de gasóleo, que abastece aos 400 litros de cada vez, que eu lhe ofereci boleia, não foi ela que me pediu, e que seria impossível de fazer qualquer tipo de contas sobre quanto custava o gasóleo dela! E pronto, arrancamos.
A curiosidade é algo de natural, é um instinto, é uma força que move as pessoas, os animais, talvez até as coisas. E moveu a nossa conversa. Lucien é assistente social, apoia prostitutas toxicodependentes na chamada faixa de risco, ou seja aquela fase em que tudo parece estar perdido. E perdido por cem é perdido por mil, sem preservativo, sem regras, com agulhas, seringas, pratas e limões. Perante essa visão acabei por deixar sair uma banalidade pela boca fora, nunca imaginaria uma rapariga com um aspecto tão frágil a fazer esse combate diário. É uma vantagem, disse-me ela, uma máscara, uma bóia de salvação perante o demónio.
Contou-me de como é fácil passar o risco, o tal que todos sabem que existe mas que ninguém vê. A primeira hora de viagem foi a falar dessas pessoas, das que estão junto do risco, umas por opção, outras pela força da correnteza do rio da vida. Todos dizem que a vida é um caminho, que escolhemos a estrada que queremos seguir. Mas eu que conduzo em todas as estradas, que escolho entre todos os caminhos, digo que não. A vida é um rio. Um rio de corrente forte e indomável, onde a força dos remos resolve pouco, muito pouco. Não caminhamos, somos arrastados. Uns melhor, outros pior.
A segunda hora foi rir. Rir muito. Das peripécias dela com os proscritos pelo mundo normal. Do meu mau francês e do péssimo inglês dela, do meu curso de germânicas e porque nunca acabei por o usar, enfiado numa escola a ensinar palavras estranhas a adolescentes borbulhentos. E lá acabei por lhe dizer essa parte estranha, mas doce da minha vida. Como por brincadeira tirei a carta de pesados, como fazia companhia ao meu amigo, mais pelo interesse na irmã dele. Como ele acabou por se casar com a minha irmã e como eu acabei por me separar da irmã dele. E rimos da dor. Da dor de Lucien nunca conseguir realmente resolver algo em definitivo na vida das putas e dos drogados, de como eu pareço nunca chegar a lado nenhum apesar de passar os dias a viajar, do facto de nenhum dos muitos namorados de Lucien compreender a dedicação dela a pessoas que não lhe agradecem na maior parte das vezes, do meu problema de ausência permanente, e rimos de estarmos a rir.
Confesso que fiquei triste quando chegamos ao ponto B da recta que unia o carro empanado da Lucien e a estação de serviço do quilómetro duzentos e oitenta e três da auto via A quatro cinco zero. Confesso que fiquei arrependido de não lhe ter pedido o contacto, convidado para um café, para um vinho, para uma noite. Mas de arrependimento está o inferno cheio e lá segui para Paris – tenho que chegar, entregar este contentor cheio de pólos quase de marca a uns chineses duvidosos que depois de coserem muito bem cosidos uns lagartos retorcidos no peito, os vendem, todos contentes, por tuta e meia.
De manhã tomo um banho no quarto da pensão e visto a segunda muda de roupa que sempre trago na mochila. Lá por ser nómada não tenho que ser porco! Como um pequeno almoço que faz jus ao adjectivo que acompanha o almoço e sigo de volta para Badajoz. Lá me espera o armazém, a carga de mais qualquer destino que ainda não sei. E prefiro assim. Alimento uma curiosidade, que se completa no momento da revelação, como um sexo entre coisas esteréis.
Na volta não resisto a passar por Lyon, uma desculpa qualquer que me falha agora, mas julgo que foram pneus… como se não houvessem pneus em Espanha!
Mas não encontrei de volta o acaso. E então conformado regressei. Devorei os quilómetros com uma raiva miúda de quem queria mais arroz doce mas sabe que não pode.
Passados cinco anos encontrei Lucien em Sevilha, eu estava de férias e ela também. Disse-lhe que estava farto de viver sozinho, ela também.
Não nos casamos, mas vivemos juntos em Lyon. Eu agora dou aulas de inglês a franceses seniores. A correnteza do rio levou-me.
É quinta-feira santa. A tarde é mole, as companhias estão fechadas. Há trabalho para fazer mas não apetece, não há movimento, ninguém entra no escritório. Querer sair do trabalho é um hábito, um reflexo que custa a perder-se. O colega também está inquieto, quer sair, tem a família à espera para festejar a Páscoa. Falam sobre isso. A rapariga pensa que também quer sair mas na realidade não tem nada de urgente para fazer, é apenas um reflexo condicionado. O patrão chega, pergunta por um último pendente. Está tratado. Friamente informa que como está tudo em ordem podem fechar o escritório e sair. Ele próprio sai logo. O colega regozija, ainda faltava mais de uma hora para sair, não é a tarde de tolerância por que ansiava mas já é alguma coisa. A rapariga arruma os papéis, desliga o computador e a fotocopiadora, corre o estore, os mesmos gestos de todos os dias, só que mais cedo. O colega desliga as luzes, fecha a porta. Despedem-se desejando-se mutuamente boa Páscoa. Ele sabe que vai ter uma boa Páscoa e sabe que a da rapariga não vai ser boa. Ela também sabe. Ele sobe a rua. A rapariga desce indecisa, escolhe outra rua que não a de todos os dias. Está um vento ameno, cheira a primavera, ela gostava de viver. Os passos são incertos, não sabe o que fazer com aquela hora extra. Conhece o que é chegar tarde a casa, por causa de afazeres ou entrevistas de trabalho tardias, mas desconhece o chegar mais cedo. Decide que não quer ir para casa, que tem medo da casa quieta. Vai ao centro comercial, é isso. Só para distrair, sem objectivo, só para ver pessoas e agitação. A estrada distrai a rapariga, outra vez o cheiro da primavera. Tem que tomar atenção à saída da auto-estrada. A rapariga não gosta de conduzir, tem sempre medo, menos medo agora, mas sempre medo. Chega ao centro comercial, está cheio de gente, pessoas de fora que vieram gozar as férias da Páscoa, são muitas, demasiadas. Entra numa loja de que gosta, é cara, nunca comprou lá nada para ela, agora muito menos, lamenta nunca ter comprado aquelas malas bonitas quando podia. A rapariga sai da loja, percebe que a agitação do centro comercial não lhe faz companhia. Sente-se estranha, não se habituou ainda a andar quase sempre sozinha, falta-lhe qualquer coisa, não é a mala, ela tem a mala com ela e dentro da mala o telemóvel, as chaves, a carteira, outras coisas inúteis. As pessoas à volta são muitas, andam de um lado para outro, falam alto, riem, estão contentes porque é Páscoa. As pessoas parecem cobertas por uma substância pastosa. A rapariga vê as pessoas que se mexem e falam como se fizessem parte de um filme. Falta-lhe qualquer coisa, falta-lhe a vida que impulsiona aquelas pessoas. Ela ouve pedaços de conversa, coisas pequenas, pouco importantes, muito importantes para quem as diz. Tudo é pastoso. Ela gostava de comprar uns brincos, não consegue escolher, também queria comprar alguma roupa, tem pouca que lhe sirva, está demasiado magra. A rapariga quer uma espécie de uniformes, umas roupas que combinassem umas com as outras e que não dessem muito trabalho a escolher de manhã. Ela tem que se preocupar com a imagem, é uma obrigação por causa do trabalho, tem que disfarçar a magreza excessiva, as olheiras. Não há nada do que ela procura, é tudo confuso, não consegue escolher, falta-lhe qualquer coisa, ainda não acha jeito em andar sozinha. Não pode gastar dinheiro. A rapariga foge dali. Sente-se morta e não consegue ver a vida, no entanto, não deseja o mal daquelas pessoas que riem, quer que sejam todos felizes, que tenham todos histórias bonitas. Não odeia aquela gente barulhenta e contente, apenas lhe faz confusão a vida, estando ela morta. Vai para o carro triste de que não gosta. Entra. Um Clio amarelo passa por ela, mecanicamente olha para a matrícula, não é NH, não é o carro alegre, nunca mais viu esse. Descarrega toda a tensão, chora mais uma vez, chora como todos os dias. Escolhe o caminho da estrada velha, como sempre, tem medo de se enganar e não acertar na entrada da auto-estrada. Vai a chorar todo o caminho, agora chorar é normal, é quase uma necessidade fisiológica. O caminho parece interminável mas a rapariga não tem pressa em chegar. O caminho é de buracos, sempre buracos, carros à frente sem luzes de travão, os olhos embaciados. A rapariga chega finalmente à aldeia, as vizinhas estão sentadas no mesmo banco de sempre. É preciso acalmar dentro do carro, limpar as lágrimas, os óculos escuros ajudam. A rapariga sai, prepara-se para chegar perto da porta. Do porta-chaves escolhe logo a chave da porta de casa, a que tem um MT gravado, assim não tem que ficar à porta a escolher chaves, não vai haver tempo para conversas com as vizinhas. Ela sabe que tem que desejar pelo menos boa tarde. Chega perto da porta, inspira fundo para conseguir falar, diz boa tarde, conseguiu. As vizinhas só retribuem, não há nada a dizer, tudo está dito, o carro branco não está lá há muitas semanas e não é preciso que nada mais seja perguntado. A rapariga entra em casa, vai abrir a porta de trás. Os gatos vêm a correr do fundo quintal, dizem olá, ela disfarça a tristeza, também diz olá. É fim-de-semana de Páscoa.
ResponderEliminarRAPARIGA
ResponderEliminarIsto parece um romance...