quarta-feira, 22 de abril de 2009

Memória do meu bisneto

Já não me lembro bem como foi…  os pormenores até que me recordo, mas a totalidade da coisa escapou-se me! É daquele tipo de coisas que nos ultrapassa, que por mais que queiramos, só poderíamos absorver e compreender, no seu todo, se as vivenciasse-mos vezes repetidas, como uma música que se decora a letra de tanto a ouvir.


Eu vinha do trabalho, deveriam ser dezoito e trinta, dezanove, mais não. Eu na altura estava no Segundo Plano que era um sistema de trabalho social para Regenerados de segunda geração, que é o meu caso, já vou na terceira  regeneração. Lá no escritório tinha sido tudo muito calmo, era um dia normalíssimo, sem stress algum. Meti-me no auto e ia na via externa de acesso ao Bairro XLVIII quando aconteceu aquilo. Na altura não compreendi nada do que se estava a passar, e muito, ainda hoje, não compreendo. O céu primeiro iluminou-se dum rosa eléctrico, flamejante, de seguida o auto saiu do controlo automático enfiou-se pela berma da via contra os autoportantes de segurança. A voz do rádio digital simplesmente estava toda baralhada e não dizia coisa com coisa, saltava de servidor em servidor, mudei para rádio analógico enquanto mirava o céu que entretanto tinha ganho um brilho tão forte que deixei de puder manter os olhos abertos. Mas o rádio analógico também não funcionava, apenas emitia um zumbido. O painel do auto estava simplesmente morto. Depois o céu ficou escuro, muito escuro, completamente escuro.

Aos poucos comecei a perceber o que se tinha passado. As notícias que me entretinham durante o jantar já o tinham evidenciado e sentia-se a tensão no ar. Todos os dias surgia uma nova notícia na Janela sobre algo que, tudo somado, só poderia levar a isto.

É impressionante como tudo aconteceu rápido e de certa maneira indolor.

O meu bisavô Guerreiro falava muito da guerras do Iraque, do Kuwait, do Irão e da Mongólia como coisas que demoravam semanas a resolver, mísseis, casas destruídas, refugiados… Aqui não houve tempo para nada disso. Os mortos morreram na hora, os queimados na própria semana e os que sobreviveram correram para debaixo do solo no próprio dia.

Desde esses dias que vivemos dentro da Cúpula. Os que sobreviveram ao Clarão agonizam numa cela com pouco mais de dez quilómetros de diâmetro. A Cúpula é o que resta de uma civilização. O último resquício de uma raça que se achou superior, mas que não soube lidar com um pormenor mesquinho. Uma gaiola, onde tentamos fingir que não estamos condenados. Onde tentamos explicar aos nossos netos o porquê de eles terem que ser pais antes dos cinquenta - ao contrário de nós. E nem nos atrevemos a dizer-lhes que o mais certo é nem isso conseguirem…

Vivemos aqui há quase quarenta anos e sem vislumbre de melhoras… O ar rarefeito, reciclado até à exaustão, a comida plástica no sentido absoluto do termo, as doenças de pele, a água com sabor, e o céu sempre negro. Como deixamos de ter acesso ao mundo exterior, como tudo mudou, incluindo a nossa maneira de viver o que resta da vida. Agora, que somos quase todos inférteis, é que a tecnologia de regeneração é quase impossível de aplicar – ironia das ironias. E pensar que esse foi o motivo ideológico da guerra. Melhor, esse foi o motivo que nos impingiram como o motivo pelo qual destruíram o céu, secaram o mar e carregaram os solos deste zumbido radioactivo. Mas não foi. Nunca é. O motivo é sempre o mesmo. O motivo da primeira, da segunda, e da terceira não seria diferente do de todas as outras guerras: mesquinhez e ignorância. Uma luta estúpida e desmedida por um poder que é tão provisório como as nossas vidas e a ignorância do quanto podemos fazer com o pouco que sabemos.


Mas ainda assim, mesmo depois de tudo isto, as intrigas continuam – dentro da Cúpula. As famílias disputam entre si coisas que nunca demos valor, mas que agora são verdadeiramente importantes – água potável, comida de verdade, parceiros férteis e viáveis. E parece que a política veio agarrada a nós, como um carraço que sobrevive ao dilúvio. Continuamos a ser macacos mal amestrados, mas agora dentro de uma redoma mais pequena. Guinchavamos por um lugar ao sol, e desta vez por um lugar à sombra deste novo sol. É completamente absurdo, autista, mas continuamos a ter políticos, polícia, Estado, lei... para trezentas e poucas mil almas dentro duma redoma... como queijo protegido da gula das moscas.


A Cúpula foi construída por um punhado de poucas centenas de homens que tiveram a coragem de sair por oito meses do Abrigo Central - um bunker miserável sem o mínimo de futuro. Com um pouco de engenharia construíram, dentro do possível, um abrigo para tentar desenvolver algo que se assemelhasse a uma esperança. Esses homens, na sua larga maioria, morreram ainda antes da conclusão, pela mão da implacável e muda radiação. Esses eram homens – abdicaram de si por nós. Mas volto a perguntar-me: para quê? 


Este dilúvio teve o mesmo resultado do outro – a reconstrução de uma ninhada de ratos, abrigados numa Gomorra enfrascada. Confesso que me vou fartando de esperar que nasça o sol, para me voltar a desiludir com um disquinho luminoso no meio da escuridão.


Eu sei, e alguns de nós têm a certeza, que lá foram sobrevivem viventes, mutantes, com as suas gerações transgénicas, nos subterrâneos do mundo – metropolitanos, redes de esgotos, o que desse. Mas nós nunca tivemos a coragem de os tenta contactar. E sei que os nossos líderes (sim, os lideres voltam sempre a aparecer…) mantêm a secreta esperança que eles padeçam antes de os podermos ver. Mas seria no mínimo pedagógico, para percebermos no reflexo deles o que fizemos...


Tenho entretido os dias a ler os poucos livros que não foram apagados dos discos rígidos pelo Clarão. Vou buscar a dose diária de alimento de síntese ao Laboratório da União, num passo calmo e de quem já não tem muito a perder, mas consciente que pior que perder é dar-se a perder. Mas é difícil levar uma vida organizada quando o sol, quer nasça quer se ponha, não muda a cor do céu. Não tomamos banho normalmente porque a água é racionada, reciclada, mantida sob um controlo policial militar – passamos toalhas com álcool no corpo. Tento não respirar muito fundo para não absorver o ozono e os aditivos desinfectantes e toda a merda que agora misturam no ar. E a Janela já não existe - racionamento energético. 


Mas de tudo, o que me custa mais, por muito egoísta e estúpido que isto vos possa parecer, é ter que explicar um dia ao meu neto, que talvez nasça este ano,  que o céu era azul, que o mar tinha um cheiro, que havia chuva, estações do ano, uma luz natural que a nada se compara ao zunir das lampadas fluorscentes. E na verdade nem sei bem com isto aconteceu, não o vou conseguir explicar. Não sei o que lhe direi se me perguntar porque não fizemos nada... Às vezes, no pouco sono que vou tendo,  sonho que houve alguém que conseguiu evitar tudo isto – e eu estou na praia a comer uvas.

 

 

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