quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Eu sei que são só vinte minutos.

Eu sei que são só vinte minutos. Sei que não é o fim do mundo, até por que esse de tanto prometido nunca mais chega. E sei que até me posso considerar abençoado, não é das piores linhas, há quem tenha que mudar de linha, apanhar eléctricos e comboios e sei lá mais o quê. Eu sei isso tudo… Mas isto está a tornar-se como uma ferida que não cura, volta e meia rebnta a crosta, sangra de novo.

E hoje então, isto está mesmo do piorio. Um calor abafado vibra nas janelas, tolda a cara dos caros utentes, sua nas camisas dos estagiários, enfraquece as pernas dos turistas exploradores, inquieta os estudantes na recta da meta antes do devaneio do Verão. Poderiam ter dormido setenta e duas horas de enfiada que assim que aqui entrassem, entrariam na mesma hipnose sonolenta de quem não quer pensar, de quem não quer estar aqui, de quem só quer é chegar ao ponto B, as portas abrirem-se e fugir para o ar livre. Por isso todos nós somos sonâmbulos aqui. Todos estamos no devaneio do limbo pré hipnose, ou pelo menos representamos que estamos, para o público sacolejante, de estação em estação.

Abre-se a porta na primeira estação depois da que me engoliu. Sai um magote desordenado e aleatório, que isto não é o Japão e nós não somos finlandeses, entra um outro magote, cara de derrotados antes do jogo, não há lugares sentados, não há lugares em pé com o afastamento que o Verão pede. Um ser enrugado, pálido, quase translúcido, encosta-se à barra que dá forma ao assento e abre o jornal. Ler é das poucas liberdades que esta caixa de aço e alumínio nos dá. Mesmo que sejam só vinte minutos… é como a sesta, também não convém que seja muito mais.

Que fez este velho com a vida que passou por ele? Porque insiste em nos acompanhar na toupeira de ferro? Até quando vai ele ter paciência para ler o desportivo neste embalar ruidoso e intermitente? Não sei. Problema dele.

Mas não deixo de ser puxado, magneticamente, para uma observação longa e detalhada da figura, um espectador de uma exposição de fotografia, sem a preocupação do observado ver o observador. Não só as rugas são imensas, como o cabelo, apesar de intacto no couro, já não apresenta qualquer cor. Nunca saberei se este homem foi louro, moreno, ruivo… As mãos são finas, longas, aparentemente impossíveis de articular. Mas articulam, numa quase adivinhada dor de falanges e falangetas, a separar com cuidado e calma cada folha do jornal. A roupa antiga mas de corte adequado ao corpo, sinal de um cuidado de quem percebe a arte de sobreviver ao abismo do tempo e da indiferença. No fundo, mais um sobrevivente da travessia diária, conformado com estes minutos de alienação, calor, cheiro, contacto. Saiu no magote seguinte, passo lento mas firme, vai seguro, não precisa de pena, misericórdia ou carinho - por isso não divago mais com ele, fica apenas a minha inveja pela sua serenidade, que tanta falta me faz nestes dias de calor e suor.

Existe uma periodicidade estranha e nova na frequência com que ultimamente revejo pessoas que não conheço mas que reconheço. Uma senhora de meia idade, de roupas sempre com algo de florar, sacos de compras, revistas cor de rosa e sempre uma chamada de telemóvel para atender, em voz alta e brejeira. Um casal de asiáticos que agora revejo-os na situação de pais, ainda mais stressados e assustados que antes, a mirar os mirones pelo canto do olho, o que no caso deles é um autêntico triângulo. Uma estudante, que agora já não o é ou então fartou-se de carregar livros. Ia sempre muito provocante na pose e no estilo, mas nestes dias vai sóbria e alheada. Talvez tenha casado e vá a pensar no móvel da sala que queria tanto comprar, talvez tenha casado e vá a pensar que não quer comprar móvel nenhum mas que agora já é tarde. Um senhor de idade, mas não muita, que se não é padre disfarça muito bem. Sempre com um esboço de sorriso que nunca concretiza e uma polidez abafante e desnecessária. Um preto que teima em continuar a ouvir música, nos auscultadores, alta. Mas agora ouve-a ainda mais alta, como se a quisesse também enfiar pelos nossos cérebros adentro, num prenúncio da surdez precoce que daqui a uns Verões lhe vai assaltar. Um homem de traços finos e pouco vincados que teima em ler livros de espessura hercúlea. Continua a fazer pausas no que lê para mirar um ponto que está para lá do fim da linha da ultima estação. Acho que ainda não chegou a conclusão nenhuma. Um tipo encorpado, que agora ainda se mostra mais encorpado, de tal modo a roupa parece sempre pouca para toda a massa de músculo e tendão anexa a ele. Sempre com o seu saco desportivo, enorme como ele, à beira dos pés, em segurança. Ainda assim não são estes seres revisitados que me diluem a sensação de vazio quando as portas fecham e damos o solavanco que vence a inércia. Eles nunca saberão que eu sei que eles existem, e eu nunca saberei que alguns deles até sabem quem eu sou. É como lá no meu prédio. Eu sei que a minha vizinha faz sempre uma algazarra de risos e gritos com o marido na sexta à noite. Mas não sei o nome deles, nem vou lá perguntar.

Certos dias consigo libertar-me do facto de estar aqui. É muito simples na verdade. Levo um bom livro, uma má revista, um jornal sensacionalista, um jornal politizado, uma magazine de música, um qualquer punhado de letras organizadas de modo a pôr os olhos nelas. O problema é que como tudo o que é simples, é difícil de alcançar se não tivemos a mente limpa.

Umas das ajudas, por muito mau que isto vos possa soar, para me animar na viagem são os painéis publicitários. Têm sempre algo a dizer, mudam todas as semanas, são coloridos e algumas vezes até me fazem rir, de um modo inteligente e silencioso. Assim eu vou sabendo que com Tolf a minha vida pode ter uma frescura crocante e que sem Nils a minha roupa jamais será a mesma. Já não consigo viver sem a brisa fresca e suave do roll-on Vuzt e sei que mais cedo ou mais tarde vou ter que fazer aquele PPR do anúncio do cão e do velhote. E sinto-me de algum modo unido a algo, acarinhado por alguém. Eles pensaram em mim.

Existem alguma coisas na viagem que, à falta de distracção maior, ocupam o meu pensamento por dois ou quatro minutos. Tenho um fascínio sempre renovado pelas galerias técnicas, com os seus destroços abandonados, os seus cabos multifilares, multicolores, multiembaraçados e multipoluídos a correrem a par e par com a carruagem. Que se passa lá? Se eu lá me escondesse, eremita solitário em busca de iluminação celestial, alguém me iria interromper? Se calhar o velho estóico do jornal desportivo… nunca se sabe. E lá ouviria o mesmo que oiço aqui dentro desta caixa metálica?

Todo o ruído, mecânico, repetitivo, que vou reconhecendo, uma música que canta o caminho de ida e o de volta, apenas alterada pelo adorno das vozes, dos passos, que mudam. Mas não mudam muito. O ritmo é sempre o mesmo, a cadência também… é mais uma questão de instrumentos… uma vezes mais graves, com mais ou menos vibratto, com maior ou menor ataque. Esta música já me embala estes vinte minutos de ida e vinte minutos de volta há quase oito anos, e nada a muda. Pintaram as estações, mudaram as máquinas de venda automática, renovaram os assentos, mudaram as correias onde nos penduramos em segurança, quando de pé é a única maneira, mas a música mantém-se.

De início, quando fugi do fim do fim-de-mundo para este beira do fim-de-mundo, tudo isto me fascinava. Um brinquedo gigante de sons, cheiros e reboliço. Nada me fustigava e tudo merecia ser observado com uma atenção de esponja de lavar loiça. Prendia-me em pormenores gigantescos, quantas pessoas estão numa estação, demorava-me em generalidades microscópicas, o padrão do vestido da rapariga morena do banco da frente. Tudo era válido para transformar cada viagem numa viagem nova. No fundo já pressentia o peso da rotina vulgar e desgastante do que viria depois. Depois veio a fase do cliente habitual, metia conversa, ria de coisas banais, sentia-me em casa. Mas ultimamente já não suporto esta parte da minha existência. É tudo demais. Fico com um cheiro a metal oxidado na roupa, se com sorte não tiver que tocar em ninguém que cheire pior que eu. De manhã ainda levo, eu e todos os outros, o odor dessa panóplia de coisas que se compram nos supermercados. Mas no final do dia já isso foi gasto em telefonemas, em correrias, em labutas, e cheiramos todos ao mesmo, uma raça humana cansada e infeliz. Os bancos largam um fedor velho e lento a cidade, abafado pelo cheiro a electricidade, vomitado pela goela do tubo, por onde entramos todos no nosso sonambulismo comunitário.

Lembro-me de há coisa de dois meses ter encontrado um colega de longa data no percurso de volta. Não o via há mais de dois anos. Dois anos não é assim tanto tempo, mas neste caso pareceu-me que tinham enfiado o rapaz numa máquina de secar roupa, centrifugação no máximo, programa longo. Mais um fruto da cidade. Encetei conversa tentando alcançar o estado de graça e harmonia que tínhamos há vinte e quatro meses, mas pareceu-me estar a falar com um estranho sobre outro estranho. Desde esse episódio que o evito se pressinto que ele possa estar na mesma carruagem. Não quero repetir aquela sensação de estranheza, de ver um corpo familiar, que julgo conhecer, não ter nada para me dizer, nada em comum para falarmos. Assim preservo a imagem antiga dele, do bebedor de muitas noites, do falador de muitas conversas do riso de muitas risotas. E evito o estranho que agora colecciona profundidade de olheiras e respostas vagas e óbvias.

Antes deste tédio enorme, perdia-me a apreciar o graffiti da subcidade. É impressionante onde este pessoal vai para borrar uma parede. Dentro da galeria existe todo um ecossistema de tagues que lutam entre si para se perpetuarem no ínfimo espaço de tempo até um outro puto com sonhos se infiltrar no tubo. Algumas preciosidades artísticas vão decaindo com o tempo em suportes diversos: caixas eléctricas, sinalização, cartazes gastos… até que a murraça negra encobre tudo, uma nova tela para o próximo graffiter. Mas o graffiter alimenta mais a alma dos que pintam da que dos apreciam e filtrar o sumo no meio de tanto lixo começou-me a cansar e abri portas ao tédio de novo.

Não se iludam os que pensem que eu desgosto deste sitio. Acho que não encontraria outro melhor para mim. Apenas queria outra posição neste plantel. Por vezes, quando vou ao centro para comer um hambúrguer mal passado com alface industrial, observo os apartamentos no alto das caixas altas de betão. Não deve ser assim tão mau…

Confesso que já pensei em fazer o sacrifício de gastar mais doze minutos para ir de autocarro – mudar a minha vida. Mas doze minutos implicam muita coisa. Implica acordar mais cedo, implica chegar tarde… e eu sei que depois volta tudo ao mesmo. O que tem que mudar não é a viagem, é o viajante. Esta pessoa tem que perceber de uma vez por toda que são só vinte minutos, nada mais que isso. Serve apenas para chegar ao trabalho. Não há nata de metafísico nem de poético nisso. É só a merda de uma viagem de metro.

1 comentário:

  1. Tu não só sabes, já estás completamente mentalizado. És tu próprio que transforma esses vinte minutos numa merda duma viagem de metro.

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ehhhhhh