quinta-feira, 18 de junho de 2009

infância Perdida

As idas a casa são sempre estranhas. Talvez porque já não seja casa como foi. Fico, de certa forma, esquivo e de olhar fundo. Corro aos repelões de um lado para o outro e vou atafulhando as malas de roupa suja e tupperwares ainda besuntados com restos de comida velha, que por lá se foi cravando. Fecho tudo, as persianas batem ruidosamente e sacodem o pó, olho uma última vez para me certificar de que tudo está em ordem, e o escuro que toma o quarto enche-me o estômago de um desabitado enjoativo. Não tenho tempo para pensar e, enleado no puzzle dos fios dos headphones que me namoram as orelhas, ouvindo compulsivamente um estranho álbum dos The Books, vou correndo atrapalhado pelo metro até à estação dos autocarros, carregando um aglomerado de malas e livros e jornais que compro pelo caminho e encalhando em desconhecidos que me fitam furtivamente.
Gosto de viagens. Gosto essencialmente da calmaria que encontro nas viagens de autocarro. Desapareço no fundo do autocarro e sento-me junto à janela, que me vai contando histórias fugidias, por entre árvores e casas e pessoas que desaparecem rapidamente, perdidas nas cores esbatidas e espantadiças que, ao longe, no horizonte, implodem lentamente. A televisão passa a merda de um filme qualquer que berra tiros no ecrã, uma comédia de acção – “Hora de ponta” – ou algo género, tento ignorar e adormeço, aos poucos…
É estranho chegar a casa depois de algum tempo de ausência. Paro por momentos, e observo o prédio indelicadamente suburbano que me pariu, vestido ainda com a tinta rude da altura, e fico imbuído num sentimento alto de apatradismo, talvez com vontade de não entrar em casa. As minhas coisas, antigas, fedem um aroma que desconheço, como se já não fossem familiares. A casa está vazia, deixo tudo espalhado pelo chão e estendo-me na cama de barriga para cima e os braços colados ao corpo. A sensação é estranha, como se estivesse a dormir novamente pela primeira vez naquele sítio. Apetece-me fugir, desaparecer, perder-me no verde-escuro tenso que a vista do meu quarto esconde lá ao longe. As nuvens, carregadas de um cinzento danado que ameaça bolçar água e trovões, fitam-me de esguelha, reconhecendo-me de outros tempos.
Resolvo visitar a minha avó e sigo, rumo à minha infância, por um carreiro de terra batida e pedras a espaços, que vou pontapeando e acertando no espaço, agora um pouco diferente, mais largo e comido. Sobrevivo. Movo-me pela paisagem temperada com carros velhos plantados pelas valas que foram crescendo ao longo dos caminhos, ali deixados pelas bebedeiras dos cromos rebeldes e heróis que me fascinavam na altura, que já fazem parte da própria vegetação, cascalho escorregadio e perdido e erraticamente tresmalhado, ovelhas sujas perdidas pelo pastor que morreu bebido de aguardente atrás de uma moita qualquer, pequenos animais cobardes que ao mínimo ruído desaparecem num instante na negridão de folhas mortas e secas que vestem partes da estrada, viajo no tempo, a cada passo que dou, recuando aos sítios que conheci ainda criança.
O voltar a casa por vezes é difícil de parir, a sensação que me fode as entranhas é diferente de todas as outras. Arrasto os ténis sujos e os atacadores desmazeladamente soltos pela terra, apatia que agora sou, e, ao começar a tocar no ipod a The rat dos The Walkmen, cedo avisto novamente casas, de um branco vertical que encandeia, cães de pelo arraçado, irritados num cio de metáfora, que limpam a calçada cagada pelo cagaçal das galinhas desgrenhadas que vagueiam estupidamente sem rumo e comem restos de melancias vazadas pela calçada e de pedaços de esferovite deixados ao vento, velhos quase mortos que se arrastam pela sombra dos bancos, exterminados por relógios em forma de pistola, e pouco falam e reconhecem-me de soslaio, - o neto do outro, aquele que foi para a capital, entro numa ruela que conheço como a palma da mão, quantas vezes sangrada dos tombos de criança, e sorrio.
Irrompo casa adentro depois de pontapear o Morais, todos os dias mais velho e de olhar oco, já sem a jovem vontade dos bordéis caninos que o faziam desaparecer durante semanas, que me reconheceu logo, abanando a cauda e erguendo-se para me receber ganindo sentido, e grito
- Ó avó!!! Berro que percorreu rapidamente todas as divisões da casa agora desabitada.
- O meu neto!!! Não sabia que vinhas tão cedo. Há tanto tempo que não vinhas à terra, há tanto tempo que não te via João, desde que o teu avô morreu, respondeu-me sorrindo de lágrimas atrás das lentes amarelas dos velhos óculos que conheço desde sempre.
- Pois, avó, sabe que com o trabalho é complicado vir cá ao fim-de-semana e estes últimos meses têm sido complicados…digo-lhe enquanto me descalço e abalroo o sofá que expele uma nuvem de pó que vai planando o ar vagarosamente, tusso duas ou três vezes e vou contando como avança a carreira e a namorada e todas as insignificâncias que significam neste mundo e oiço as amarguras de uma vida, talvez, demasiado comprida…
- Ai que já não vou ver o meu neto casar, que pena, diz-me, num tom de pesar, enquanto retraça maquinalmente uma chouriça, com os dedos eximiamente entrelaçados entre a carne de sangue e a navalha.
Como uma omeleta, usando a côdea do pão caseiro como faca, é assim que ensinam os bons modos na terra, e mastigo furiosamente sem pensar em nada. É peculiar a cumplicidade que me liga à minha avó, muitas vezes mãe, mesmo com as muitas ausências que a vida e os diferentes tempos impuseram. O silêncio emaranha-se no fumo baço que o fogão, despido, vai cuspindo, e vejo o brilho do orgulho que os olhos cansados da minha avó carregam.
- A tua avó está muito mal, já nem vejo nada vê lá, apanha lá essa agulha que está aí no chão João ou ainda furas um pé, diz-me ironicamente franzindo a cara.
Sorrio e apanho a agulha perdida pelos mosaicos pintados aos losangos cor de vinho que vestem o chão da casa,
- A avó vê melhor que eu, que sou mais cego que uma toupeira, digo-lhe piscando um olho.
O jantar aparta-me da realidade, concentro-me de faca e garfo empunhados e ruidosamente vazo o prato que, depois de lambido, brilha de uma forma quase obscena, não há ninguém que cozinhe como uma avó. Repito, embora a pança já pese de cheia,
- Come filho, estás tão magrinho, lá em cima não tens ninguém que te trate como a tua avó, não é?!
O tempo fugiu e resolvo não sair, não me apetece reencontrar ninguém do passado. A casa reanima as lembranças que julgava afogadas, as gaiatices que fazíamos, memórias encravadas e densas que nem uma pasta cremosa,
- João, dá-me um bocadinho de chocolate para experimentar. Sabes, nunca comi chocolate e gostava de experimentar, tenho a sensação de que não passo da noite de hoje filho, disse-me enquanto afagava a cabeça com o esquelético indicador direito.
- Não diga isso avó, está ai rija, ainda há-de comer muitas tabletes de chocolate, digo-lhe eu enquanto parto uma tablete de chocolate com nozes que tinha comprado no Lidl. A expressão de descoberta e satisfação juvenil na cara da minha avó, que mastigava com dificuldade, fez-me viver.
A noite foi de um quente que estala os poros e pára o mapa sinuoso gravado em bolor no tecto. Os pássaros mansos calaram-se e abotoaram-me os olhos e as pálpebras tímidas. Quando acordei, um cheiro estranho a decesso abastava o ar, inerte e doente, um punho apertou-me o coração e o estômago empalideceu, corri para o quarto da minha avó, que ainda estava deitada, tapada pela escuridão que lhe carcomia o rosto às escondidas. Estiquei os dedos cautelosos e ao tocar-lhe a pele arroxeada senti as vísceras jorrarem gelo. Senti a loucura e a melancolia embriagarem-me as pupilas que dilataram.
Corri por entre os gritos luzidios da ambulância que estacionava atravessada e voltei em silêncio, vagando pela tempestade inclemente que afundava navios e engolia mar, a minha infância, na falta de uma última piada que afastasse a morte, acabava de morrer-me.

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