quinta-feira, 18 de junho de 2009

A menina que gostava dos sábados

Era sábado, o melhor dia da semana. Brincava com as bonecas espalhadas geometricamente ao longo dos tacos riscados do chão do meu quarto com mais gosto e tudo. As discussões e os gritos não interessavam ao sábado, porque era dia de jantar no Real. O brilho de criança nos olhos raiava-me nas córneas que até inchavam de ansiedade. Na noite anterior tinha tido dificuldades em adormecer porque o meu pai não chegava e a minha mãe dizia que estava doente e estava na cama a soluçar, e eu, sabendo o que ia acontecer, não conseguia dormir e chorava também e sentia coisas que não sabia explicar, ficava perdida no fundo das mantas, atenta, sempre atenta, no silêncio agitado da noite e agarrava com força um mosto de lençóis e mantas bem lá no fundo, sufocando vagarosamente com a espera. Ouvi as chaves que tentavam abrir a porta, embora com dificuldade, riscando a fechadura e a porta, e sabia já - ele vinha bêbado, um estrondo enorme e levantei-me, arrepiada com o frio que a noite tinha plantado, vi a minha mãe avançar com certeza, acendendo as luzes, e ele, estatelado no meio do corredor, lá se tentava levantar cuspindo um bafo hediondo a podre e a álcool, arrastando até à casa de banho o vómito que escorria aos esgarrões, e os gritos começavam,

- ‘Tou farta disto, qualquer dia pego na miúda e vou-me embora, és um bêbado de merda, e eu ficava especada, a nadar num pijama amarelo às flores que vestia sempre, com uma vontade enorme de chorar, sem perceber sequer o porquê e voltava para a cama e tentava tapar os ouvidos na esperança de não mais ouvir e ver e de que tudo não passava de um pesadelo. E, já na cama a fitar o escuro do quarto e as sombras que dançavam à vez por entre os apertados espaços que a persiana mostrava, chorava aos poucos, e tinha dificuldade em adormecer. No dia seguinte, limpava as lágrimas que sobravam da noite anterior e os soluços iam apagando-se devagar, e tinha sempre vergonha, sabia que os vizinhos ouviam, que os vizinhos sabiam, e ia para a escola de cabeça em baixo, seguindo ordeiramente o passeio encovando o olhar e o pio, dissimulada por entre os espaços que o dia eclipsava.

A tarde correu ainda mais depressa que eu corria pelos corredores do apartamento, apertados para as minhas pernas que cresciam minuto a minuto e estava quase na hora. O meu sorriso, agora descoberto, era gigante, uma enorme meia-lua que revelava a vaga dos dentes da frente partidos no recreio e a traquinice de uma infância solitária, que me comia a face temporizadamente. As discussões que me atroavam os ouvidos e faziam chorar às escondidas na cama, o não perceber o porquê daqueles gritos ensurdecedores e constantes, eram completamente esquecidas ao sábado.

O dia anoiteceu num instante e dei por mim já a vestir-me, um vestido lindo, rosa e branco e às borboletas sopradas, que a minha avó tinha trazido dos Estados Unidos, sentia-me importante, e lá fomos todos, num silêncio cortante de família funcional, encontrando ao acaso pessoas amigas, que me afagavam a cabeça como se de um rafeiro me tratasse,

- Está tão crescida e é tão engraçada, e lá ia sorrindo cinicamente, apesar de na altura não saber o que era o cinismo, e apenas ansiava pelo grande momento, por mim íamos a correr, até chegar ao restaurante do aquário descomunal e do senhor preto das bochechas gigantes que soprava vendavais para um saxofone dourado e gasto, lançando notas soltas e tempestivas, que já na altura adorava. Era o dia mais feliz da semana, o único, era o dia mais feliz da minha vida. Adorava brincar examinando hipnoticamente os camarões gigantes que vagavam lentamente na água, movendo-se sempre aos enxames, como se o tempo quebrasse, arrastando as turqueses desproporcionais para onde quer que fossem e que me fitavam esbugalhadamente. Éramos os melhores amigos, era capaz de ficar simplesmente a olhá-los durante horas, dias se pudesse.

Comia sempre o mesmo, longos bifes de carne de vaca que dançavam na brasa, espantando todos,

- Como é que uma rapariga tão magrinha como tu consegue comer tanto, diziam, e eu sorria satisfeita com o meu grande feito, e exibindo a ausência dos dentes da frente que nem uma velha caquéctica que masca com as gengivas. Os meus pais pouco falavam à mesa, com a excepção de quando discutiam, mas eu não me importava e ia brincar com os meus amigos vermelhos que tresandavam a mar. Ficava horas sentada a olhar para o aquário imaginando-me sereia a nadar mar fora com os meus amigos, enquanto rodava a cadeira giratória, onde me sentava sempre. Adorava as cadeiras giratórias, todas as cadeiras deviam ser assim, giratórias, e girava, girava furiosamente até ficar mal disposta, sempre, com o cabelo a esvoaçar pelo restaurante aos gritinhos de felicidade. Havia homens aparvoados que nunca saíam do balcão e, por vezes, olhavam-me com um olhar estranho e brilhante e sorria-lhes inocentemente.
Não conhecia o meu pai, era distante e pouco falava, excepto quando vinha bêbado, dizia a minha mãe, passava a vida entornado nos sofás e estava sempre chateado com tudo. A minha mãe era triste e estava sempre fechada no quarto, na treva, ciciando murmúrios imperceptíveis falando sozinha que nem a velha louca que vivia no segundo andar, enquanto eu brincava sozinha na sala, perdendo as tardes em frente à televisão a ver todos os desenhos animados e séries que passava ou enterrada em enciclopédias e livros que ia coleccionando meticulosamente.

Mas era sábado, o dia pelo qual eu esperava sempre durante a semana inteira num desespero jovial, olhando milhões de vezes para o meu relógio em forma de concha que tinha ganho no Natal passado, aquele em que jantávamos em família, como uma família. Os gritos do saxofone eram loucos e deixavam-me as mãos e os dedos a marcar tempos desenfreadamente, trauteando a madeira dura das mesas do restaurante e abanando a cabeça. Quando se mudava para o órgão, ficava triste e feliz ao mesmo tempo enquanto o ouvia, sempre atenta aos seus tiques, que me divertiam, esboçados enquanto tocava numa calmaria que estilhaçava vidros. Era a única pessoa preta que conhecia, para além dos que via na televisão, mas não me importava e adorava ouvi-lo a tocar. A noite acabava já o meu pai estava com a face enrubescida, quase parecia uma das lagostas, com as órbitas a nadar em álcool, e falava languidamente com toda a gente, como se fossem os seus melhores amigos, e íamos para casa porque a minha mãe queria, apesar de eu e o meu pai querermos ficar.

Estou frente à porta do velho restaurante, agora fechado por umas tábuas comidas de caruncho que vai trabalhando a madeira num ruído de máquina metálico e mal pregadas, e uns papéis, de um branco sujo, dizendo trespassa-se. Lembro-me de tudo isto com uma precisão tal como se fosse hoje. Gostava de ser criança outra vez, de poder voltar atrás e não mais crescer, de partir os dentes e não me importar com mais nada, apenas sentar-me em cadeiras giratórias e girar, girar e girar pelo tempo fora até desaparecer nos entretantos do espaço.

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