domingo, 25 de dezembro de 2011

Angústia Matinal


I
Deixei-a, friamente, junto a um táxi perto da estação de metro dos Anjos. Praticamente nem esperei ou acenei e voltei costas quase sem me despedir, traindo o sorriso sincero que os seus olhos revelavam no fugidio vidro traseiro. Fui andando semicurvado, movendo-me sem sentimentos e perdi, por momentos, o senso; dei por mim a enfiar-me por uma ruela por onde nunca tinha passado.
Entretanto, quase sem me aperceber, começou a chover lentamente. Uma chuva miúda, mas compacta, amanhada numa acidez melancólica. Seguia para casa, arrastava-me ― impelido pelos all star gastos e quase rasgados pelas noites sujas que me consumiam ― transtornado, enquanto todo eu começava a ficar engelhadamente molhado. A água da chuva e as lágrimas, ambas tristes, pingavam-me a cara à vez, sem pedir permissão. O casaco apertado à cintura, agora encharcado, vertia gotas por uma das suas oblíquas pontas daquele misto ou mosto de lágrimas/água da chuva. Pesava imenso. Presumivelmente foi uma qualquer reacção provocada pela amargura acídica do sal que compõe as minhas lágrimas.
Continuei a subir a rua de forma metódica, cruzando-me com os suspiros de umas árvores perdidas pelo passeio e agitadas por uma falsa brisa, aos encontrões com o acaso. Sempre tive uma relação especial com o acaso ― aberta, como agora se diz ― que ora aparece, ora desaparece, e sempre me trata como uma das putas velhas que, muito provavelmente, se estariam a vender por cinquenta euros, ou pouco mais, numa qualquer rua próxima do sítio por onde vagueava (umas para comer, outras para o garrote, outras porque, agora, nada mais sabiam fazer).
Não conseguia ouvir e a realidade aparecia e desaparecia em flashes. Era como se o Muhammad Ali me tivesse esmurrado os ouvidos até ao coma auditivo e o cérebro amolgado tivesse dificuldade em ver por entre os olhos inchados e negros. Tinha os headphones enterrados violentamente violentando-me as orelhas em troca de uns sons. Ouvia qualquer coisa triste à qual nem sequer prestava atenção...
That there, that's not me
I go where I please
I walk through walls
I float down the Liffey
I'm not here
This isn't happening
I'm not here, I'm not here
...os ténis, sujos e ainda mais gastos, embicavam nas dramaturgias soltas de uma calçada estruturalmente maliciosa e irritante que me enfrentava inclinadamente, aquelas que atribuía à minha vida. Os olhos, estranhamente abertos e inertes, transpareciam uma qualquer loucura bebida, ainda não diagnosticada, mas prognosível a médio prazo. A chuva não parava, por muito que me irritasse, e a música que me entoava o cérebro anunciava a perdição que vinha conseguindo esconder ― “Strobe lights and blown speakers, Fireworks and hurricanes”.
Parei por momentos e olhei para cima, encarando de frente a chuva, que me dificultava a visão, e o escuro tépido que mascarava a noite. De certa forma, num agnosticismo desconfiado, perguntei algo a quem quer que me estivesse a observar ― ninguém respondeu.
Intimado a andar, o meu corpo resistiu mesmo sob pena de uma possível sanção compulsória ― encontrando-se a minha mente preparada já para a aplicar e cobrar ―, como se pesasse o mesmo que o próprio planeta. Inexistia neste preciso momento. Deixei de saber quem era, apesar de lúcido.
A chuva adensava-se e sentia-me a ser engolido por um oceano de mágoa e apatia; tentava submergir esbracejando, mas o corpo não respondia. Ofegava de tal forma ― a laringe contorcia-se e não conseguia respirar ― que tive de me encostar à parede de um edifício devoluto de dois andares que parecia ter ganho vida. Os grafitis coloridos e gigantescos que o ocupavam começaram a soltar-se angustiosamente e pareciam querer agarrar-me. Perdi-me por ali, no meio das luzes dos candeeiros que dançavam sob a minha ansiedade.
Subitamente, e após acordar, uma jocosa e terna ironia apossou-se dos meus olhos e fez-me sorrir. Não me lembrava ao certo do que se tinha passado, nem de ter chegado a casa, mas estava ainda mais encharcado. Era raiva encapotada. Saí do corpo que me encurtava os passos e, enquanto flutuava como um balão de ar quente, observei-me do alto do quarto. Desapareci rapidamente, como se o balão tivesse perdido o nó e se esvaziasse e apitasse desenfreadamente, e não me procurei. Ninguém me procurou. Adormeci outra vez.

II
Eram cerca de 8h20 quando o despertador tocou e eu o esmurrei com a mão direita fechada como fazia todas as manhãs. Era uma daquelas relações violentas que pareciam estar munidas de uma dureza de titânio. Com um pontapé afastei as mantas e obriguei-me a sair da cama. A dor que me atravessava o corpo misturava-se com a vermelhidão anémica que me tomava os olhos. Abri parcialmente a persiana por onde perpassaram quatro ou cinco ruidosos raios de luz. Peguei no telemóvel e reparei na mensagem que piscava no visor ― “Adorei a noite! Dorme bem.” ―, o que adensou a nuvem de culpa e autocomiseração que me engolia. 
Calcei os chinelos com alguma dificuldade, peguei numas cuecas de um cinzento gasto e numa toalha creme e arrastei-me até à casa de banho. O chão estava frio, o que percebi nos momentos antes de entrar na banheira e enquanto mijava para a bocejante boca da sanita. Perdi algum tempo a conseguir controlar a temperatura da água até à que consigo suportar, o que me irritou parcialmente. Encostei-me por minutos à parede e reguei-me em silêncio enquanto ouvia o som da água a correr, e ia inspirando e expirando com dificuldade o vapor que poluía o espaço; passaram-se cerca de trinta minutos num curto espaço de tempo em que milhões de pensamentos me iam atropelando: o que se tinha passado comigo a noite passada; tudo aquilo que tinha para acabar até ao final do dia; porque razão não conseguia nutrir verdadeiros sentimentos por ninguém; de onde provinha o desinteresse e desapontamento apocalípticos que tinha por tudo o que fazia...
Escolhi um fato escuro, algo amarrotado, uma camisa branca e uma gravata azul, e voltei à casa de banho para poder ajeitar o nó da gravata e colocar alguma cera de forma a levantar um pouco o cabelo. Saí apressadamente de casa num passo largo, com o Beginners do Raymond Carver debaixo do braço esquerdo. O brilho instável do sol matinal irritava-me os olhos, que seguiam cabisbaixos e indiferentes. Parei no café onde parava todas as manhãs,
― “Senhor António, é uma bica, se faz favor”.
― “Bom dia Doutor, então como vai isso?”, perguntou enquanto batia na máquina do café de forma estrondosa com a peça em que se coloca e aperta o café.
― “Vai-se andando; mais um dia de trabalho…”, respondi com alguma deferência, enquanto lia um pouco ao balcão.
― “Ó Doutor, está cá com umas olheiras, não dormiu?”
― “Cá para mim foi para os copos…”, afirmou satiricamente enquanto poisava habilidosamente a chávena de café ― que encheu até meio de forma minuciosa, como fazia todos os dias ― no balcão ainda brilhante, mas agastado com a crise do país que agora ecoava do jornal da manhã e que queria saltar da minúscula televisão erguida no alto do estabelecimento.
Bebi o café num trago e bochechei um pouco para sentir melhor o gosto do café a infiltrar-se pelas papilas gustativas. Bebi um copo de água ao mesmo tempo que me inclinava ligeiramente para trás, talvez para a água vazar melhor até ao estômago, por entre o olhar agora algo preocupado do Senhor António,
― “Não passei muito bem a noite, mas agora já estou melhor”, respondi-lhe finalmente.
Saí e segui numa passada galopante até à estação de metro dos Anjos, que fedia como todas as manhãs. Aquela sordidez congénita, mijo e ratos esfomeados, era-me familiar, fazia parte do meu dia a dia e, muito provavelmente, sentiria a sua falta caso tivesse de me divorciar daquela rotina diária. Sentei-me e esperei alguns minutos pelo metro, ao mesmo tempo que ia reconhecendo as caras incógnitas que todos os dias se sentavam perto de mim, com o mesmo contrariado semblante matinal ― pareciam todos ter ingerido os mesmos comprimidos de apatia. Perdia-me a olhar para os vultos, perguntando-me sobre o que estariam a pensar, sobre o que teriam feito na noite passada, o que teriam comido, quem teriam fodido, com quem teriam discutido, o que ajudava a passar o tempo.
Saí do metro na estação da Baixa-Chiado e segui pela falida Rua do Ouro até ao início da Avenida da Liberdade, ao passo que me ia cruzando com pessoas avulsas que corriam irracionalmente para cima e para baixo, enfatadas e engravatadas ― os nós das gravatas estavam, em regra, tão apertados que os executivos, perante um convite para o autoenforcamento, pareciam ter aceite tão honrosa invitação ―, qual manada de gnus a fugir do predador numa realidade difusamente ingénua, e entrei num edifício de acabamentos dourados e portadas altas e amplas, como fazia todos os dias.
― “Bom dia, Tiago”, cumprimentei o segurança.
― “Bom dia, Doutor”, respondeu com os olhos hipnotizados pelo computador.
Esperei pelo elevador na esperança de não encontrar nenhum colega com quem tivesse de trocar umas hipócritas palavras de circunstância ― “Então, muito trabalho”?; “Sim, estou cheio de trabalho, mas é melhor ter muito, que não ter, não é?! Ahaha”. Por sorte, não me cruzei com ninguém. Saí do elevador como uma sombra e dirigi-me para o meu lugar. Tirei o casaco e pendurei-o, e, logo de seguida, após ter ligado o ar condicionado, liguei o computador maquinalmente. Era inverno, mas o sol brilhava lá fora num pesar de agonia.

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